Rui Vieira Nery, musicólogo, ex-secretário de Estado da Cultura, director do programa Gulbenkian de Cultura, teve umas crises agnósticas na adolescência, fruto de “hormonas descontroladas”, mas hoje Deus “é uma evidência” para si. “Não sinto a necessidade de Deus, sinto a presença de Deus”, disse na conversa com Maria João Avillez, no ciclo “E Deus nisso tudo?”, que decorre às quartas-feiras, na Igreja do Campo Grande, em Lisboa.

Desta vez não foi uma conversa a dois, mas a três, em que também participou o fadista Peu Madureira. E que teve, naturalmente, no centro a música, com Rui Vieira Nery a não ter dúvidas de que “toda a arte, mesmo aquela que não tem um propósito expresso religioso, é um sinal da presença de Deus”.

Para o musicólogo criar arte é o que mostra como o homem é, de facto, criado à imagem e semelhança de Deus. “A presença da música foi essencial para entrar em terrenos que as palavras não sabem expressar”, disse Vieira Nery, para quem “no momento criar há presença do Espírito Santo, mesmo que não seja num ambiente estritamente religioso”.

Fez, contudo, questão de frisar que “a música sacra é um instrumento, não é um fim em si mesma”. O seu objetivo é “ajudar ao culto”, ajudar a entrar numa esfera para lá do humano. A liturgia, lembrou, “é um momento em que estamos cercados de beleza e, por isso, chegamos melhor a Deus”.

Quanto ao que é Deus para si, “é um Pai, um criador, um mestre, um juiz, um amigo e é mais do que isto tudo, mais do que a soma das partes. Mas é também “uma referência moral, uma referência para o belo, uma referência para a relação com os outros”. Enfim, “é uma evidência”.

Tal como é uma evidência que o fado também é uma forma de expressão religiosa. E aí juntaram-se o musicólogo, filho de Rui Nery, um dos maiores guitarristas de fado, e o fadista Peu Madureira.

“Há muitos poemas intimamente ligados aos sentir religioso”, disse o fadista. E Rui Vieira Nery acrescentou que, historicamente, o fado aparece como uma canção de pessoas pobres que tentavam sobreviver em Lisboa em condições hoje muito difíceis de imagina, pelo que “naturalmente não podia deixar de ser também uma forma de expressão religiosa”.

Vieira Nery, que dirigiu a comissão cientifica da candidatura do fado a património da humanidade, considera que o reconhecimento pela Unesco permitiu uma “reconciliação nacional com o fado”. E o encontro terminou, precisamente, com fado, um fado rezado ou uma oração cantada.

O próximo encontro deste ciclo é no dia 24 com a jornalista e escritora Leonor Xavier.