José Vera Jardim foi, enquanto ministro da Justiça no primeiro Governo de Guterres, o autor político da Lei de Liberdade Religiosa que levou à criação da Comissão de Liberdade Religiosa. Esta segunda-feira passa a presidir a essa comissão por nomeação do Conselho de Ministros.

O antigo ministro quer revitalizar a Comissão, que desde 2011 tem estado em gestão, e acusa o anterior governo de “desinteresse” em relação a este assunto. Quer alargar a representação da confissões minoritárias e admite uma comissão mais alargada e outra mais restrita para gerir as questões quotidianas.

Quanto às polémicas sobre a proibição de véus e de burkinis, diz que não acha que seja esse o caminho a seguir. “Proibir vestuários ou obrigar vestuários é coisa que não me convence como modo de convivência sã entre as pessoas”, afirma Vera Jardim em entrevista à Renascença.

Como encara este desafio?

Encaro como um serviço à república que ainda vou prestar, porventura dos últimos, já que não terei ocasião de prestar muitos mais. É com gosto que assumo este encargo. E encaro também como um desafio, visto que a Comissão tem estado numa situação muito complicada. Desde a saída do dr. Mário Soares, em 2011, que a comissão – que está com os seus membros em exercício, tendo alguns deixado a Comissão – , procurou fazer o seu trabalho, mas é evidente que teve muitas dificuldades em levar por diante aquilo que é o seu mandato. Houve um desinteresse por parte do governo em relação à Comissão de Liberdade Religiosa. Espero revitalizar os trabalhos da Comissão.

Quais são as suas prioridades?

É cumprir o mandato da Comissão integralmente, ou seja, não só aquilo que diz respeito ao que tem sido feito que é o registo das religiões, os pareceres que a Comissão dá para o Governo decidir, etc., mas também uma atitude mais pró-activa no sentido de, como diz a lei, lutar contra toda a forma de discriminação, violação da liberdade religiosa, designadamente em relação às religiões minoritárias. Como se sabe, a Igreja Católica tem um estatuto especial, que é regulado pela Concordata, e a Comissão, embora tenha dois membros da Igreja Católica, não se ocupa das questões que dizem directamente respeito às relações entre a igreja Católica e o Estado.

Há uma série de coisas que fazem parte do mandato da Comissão e que, por falta de apoio do Governo, não têm sido feitas. Estudos, informações, pareceres, tomar a iniciativa de, porventura, alterar a lei ou as leis que regulam as religiões minoritárias em Portugal.

Receia que essa falta de apoio também aconteça durante o seu mandato?

Não receio porque tenho da parte da ministra da Justiça, com quem tive conversas, assegurado que o Governo - dentro das possibilidades, que são limitadas – vai apoiar a Comissão e a prova está em que no dia da posse haverá, desde logo, um colóquio à tarde. Será a primeira vez em cinco anos que a Comissão promove um debate público sobre estas matérias. Hoje há um interesse renovado sobre esta matéria das religiões e a Comissão tem aqui um trabalho importante a desempenhar.

Conta, então, com o apoio do Governo para fazer mais?

Foram essas as condições, entre aspas, obviamente, mas foram essas as conversas que tive com a senhora ministra da Justiça, que se mostrou muito aberta a dar o apoio possível.

Uma das propostas que pretende avançar é alargar a representação para outras religiões...

Faz parte, aliás, do programa de Governo. A Comissão é constituída de uma forma que temos de estudar porque tem o presidente que é designado pelo Conselho de Ministros, tem representantes que são designados pelo Governo, tem dois representantes da Igreja Católica e tem um conjunto de peritos que são designados pelo ministro da Justiça. Temos de ver se esse será o modelo adequado, penso que há alterações a fazer no sentido de alargar a representatividade das religiões minoritárias na Comissão. Já se deu um passo em frente, vão entrar esta segunda-feira outras confissões religiosas, mas acho que um dos primeiros trabalhos da Comissão é olhar para o seu estatuto e ver se ele está adequado ao que se propõe fazer.

Nesta altura quantas confissões estão representadas e quantas vão entrar?

Vai entrar a União Budista e estão representadas as confissões históricas, que sempre estiveram: os islâmicos, os judeus e os evangélicos. Agora entra a União Budista e entram outras pessoas a título de peritos, mas que devem representar, de certo modo, outras religiões. Mas é preciso alargar a outras religiões, como consta do programa de Governo, fazendo uma comissão com um plenário em que estejam representadas mais confissões religiosas e, porventura, uma comissão restrita para o trabalho quotidiano

Num Estado laico, considera que ainda há muitos sinais de catolicismo no Estado e até na administração central?

Há, mas isso são problemas culturais que se vão resolvendo. É evidente que há uma cultura cristã e católica predominante no país que, por vezes, é criticada por aqueles que defendem uma laicidade mais agressiva ou mais impositiva.

A presença, por exemplo, de militares em cerimonias religiosas, a presença do clero em cerimónias de Estado, a existência de crucifixos em escolas públicas, etc. tudo isso é presença da religião cristã, não só da Igreja Católica, que são problemas culturas que não se resolvem tanto por imposição e proibição, como pela criação de novas culturas de tolerância, que, aliás, é um dos princípios da lei de liberdade religiosa.

Quando houver da parte de alguém de outras religiões oposição a certos fenómenos que se dão na sociedade portuguesa devemos resolver esses conflitos com tolerância pelas duas partes. É isso que diz a lei de liberdade religiosa e é isso que nos propomos fazer, lutando contra a discriminação das religiões minoritárias, mas que hoje está muito reduzida, visto que a Concordata, em muitos aspectos centrais, é idêntica à lei de liberdade religiosa.

No caso das Forças Armadas, outras religiões podem pedir para estarem presentes?

Estão presentes. Nas capelanias há representantes de outras religiões que dão assistência, quer nas prisões, quer nos hospitais. Não têm o mesmo estatuto, mas também temos de ver que os princípios da igualdade têm de ser aplicados tendo em conta a situação sociológica do pais. A grande maioria dos portugueses revê-se na Igreja Católica. Muitos deles não praticam, mas a verdade é que os Censos indicam uma grande maioria dos portugueses que se revê numa cultura católica e, portanto, naturalmente, que isso se reflecte na vida social e cultural. Temos de lidar com isso sem problemas, sem criar afrontamentos entre o Estado e a Igreja Católica que são despropositados, mas dando lugar também, como já deu: na cerimónia do 25 de Abril está presente o cardeal patriarca em representação da Igreja Católica e estão presentes também os membros da comissão de liberdade religiosa. É assim que devemos ir actuando para criar uma cultura de não discriminação.

Como olha para fenómenos de intolerância religiosa na Europa, muito ligados à questão dos refugiados?

Há problemas graves na Europa, problemas de convivência entre comunidades. São problemas religiosos, mas são sobretudo problemas culturais. Vemos a França, que tem uma experiência muito diferente dos outros países da Europa do Sul, lidar com o problema com proibições disto e daquilo, do uso do véu nas escolas, do uso do burkini... É a experiência francesa, que é muito única na Europa, porque a maior parte dos países têm um relacionamento diferente com as religiões.

Não estamos livres de enfrentar problemas, mas a lei tem o princípio da tolerância, o princípio da cooperação entre e Estado e as igrejas, mas a comissão não poderá resolver todos os problemas. É o estado que tem de os enfrentar, tentando integrar todos aqueles que tem vivências diferentes e não afrontando-se uns aos outros.

As proibições de um modo geral dão como resultado reacções da outra parte. Sei que aqui há problemas diversos, não só religiosos, mas estes problemas têm de ser resolvidos a partir de uma aculturação, de um trabalho lento de aculturação da pessoas e de adesão das pessoas aos valores constitucionais que nós temos e que a Europa tem.

Vejo mal as proibições, sempre deram mau resultado, desde tempos muito antigos.

Não vê Portugal a adoptar esse tipo de proibições?

Não vejo, desde logo porque não temos uma presença tão importante de comunidades islâmicas como têm esses países. Proibir vestuários ou obrigar vestuários é coisa que não me convence como modo de convivência sã entre as pessoas. Não me parece que seja o caminho.

A França seguiu esse caminho localmente e, felizmente, o Conselho de Estado deu um parecer negativo e espero que o problema se resolva. Mas também é verdade que a grande maioria das comunidades locais que optou pela via da proibição são dominadas pela extrema-direita. Há aqui problemas graves de afrontamento.

É uma situação em que a questão religiosa é condicionada pela situação politica?

Sim, porque a França tem uma experiência única na Europa. Na generalidade dos países há um princípio de separação entre a Igreja e o Estado – princípio também defendido pela Igreja Católica e pela generalidade das confissões em Portugal – , mas em França há mais do que isso. Há uma posição de laicismo, de afastar da sociedade os sinais da religião, de não reconhecimento das religiões a não ser como liberdade de consciência e de culto, não ligando à presença social das religiões. Ora, a presença social das religiões impõe-se, é um facto com que temos de lidar e é um facto que pode ser positivo.

Portugal tem sido um bom exemplo de tolerância religiosa?

É isso que defendo também que a comissão de liberdade religiosa e o Governo devem fazer. Os países afirmam-se pelo poder, poder económico, poder militar, etc., mas também se afirmam por aquilo que hoje é comum chamar de "soft power", o poder dos seus valores, da forma como convivem e Portugal é um bom exemplo em matéria de integração de imigrantes, de convencia de comunidades religiosas.

Foi um dos autores da lei de liberdade religiosa. À luz deste fenómenos é preciso rever essa lei?

Fui o autor politico da lei, fui eu que tomei a iniciativa, como ministro da Justiça, de iniciar os trabalhos. Depois como deputado, quando reapresentei a lei no Parlamento [a lei tinha "morrido" por não ter chegado à aprovação final antes do fim da legislatura].

A nossa lei é uma boa lei, uma experiência muito boa, melhor do que outros países que se comparam connosco, como a Espanha ou a Itália. É uma lei equilibrada, uma lei boa, o que não quer dizer que a experiência não nos possa levar a fazer propostas. Essa é, aliás, uma das competências da comissão: propor alterações à lei que julgue necessárias.