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Marcelo Rebelo de Sousa tem de ser um Presidente da República “muito activo”, quiçá “hiperactivo”, para criar pontes entre o Governo e as oposições, defende Viriato Soromenho-Marques em entrevista à Renascença.

A soberania de Portugal foi “usurpada” por uma zona euro com defeitos de origem, acusa o filósofo político, que desafia o PSD a não ficar “amuado” e “do lado errado” da história, à espera de um novo resgate para recuperar o poder.

Viriato Soromenho-Marques apresentou esta quinta-feira, em Lisboa, o novo livro de António José Seguro, “A Reforma do Parlamento Português” (Quetzal Editores). Foi o regresso do antigo líder do PS à vida pública depois da derrota para António Costa nas primárias, há um ano e meio. Para o professor catedrático na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a reforma coordenada por Seguro, em 2007, contribuiu para colocar o Parlamento no centro da vida política.

A reforma do Parlamento coordenada por António José Seguro conseguiu reforçar o controlo que a Assembleia da República tem sobre o Governo?

Aquilo que se prova na análise minuciosa da tese e do livro é que o regimento elaborado em 2007, através de uma reforma coordenada pelo próprio António José Seguro, trouxe elementos novos que melhoraram substancialmente o regimento de 1976, que tinha sofrido muitas revisões e alterações pontuais. A mais significativa, feita em 1988 durante uma maioria absoluta do PSD, ia num sentido contrário ao da reforma de 2007, em que havia uma maioria do PS. Enquanto em 1998 tinha existido uma certa governamentalização da Assembleia da República, o Parlamento tinha perdido capacidade de iniciativa, a partir da reforma de 2007 o Parlamento ganha capacidade de iniciativa.

Houve uma ruptura?

A tese de António José Seguro é que há uma ruptura. Ele dá três indicadores que me parecem importantes: os debates quinzenais com o primeiro-ministro – anteriormente o primeiro-ministro chegou a estar um ano sem ir ao Parlamento-, os debates sobre os temas de actualidade com muito mais regularidade e a frequência com que membros do Governo vão ao Parlamento.

A estes três novos instrumentos ou a esta regularidade com que foram aplicados também se aliam a outro aspecto que me parece importante, que é o facto de aumentarem os poderes potestativos, a capacidade própria que cada grupo parlamentar, independentemente de ser pequeno ou grande, tem para colocar temas na agenda. O Parlamento fica ordenado por uma lógica que não é, pura e simplesmente, das maiorias. A oposição, os pequenos partidos da oposição, os deputados individualmente considerados, começam a ter iniciativa e um brilho que, de outra forma, não tinham.

Esta reforma é mais eficaz com governos de maioria absoluta ou relativa?

Penso que esta reforma é mais visível em situações de Governo de maioria absoluta, como se viu durante estes anos do Governo da coligação PSD/CDS. Apesar da sua maioria esmagadora na Assembleia, o primeiro-ministro foi sempre obrigado a prestar contas.

No caso actual, verificamos um aspecto interessante. Aqui não é só visível, é absolutamente necessário. Quando temos um Governo que é minoritário e que depende de dois ou três partidos para governar, evidentemente que hoje temos um Governo verdadeiramente parlamentar. Este Parlamento, no quadro da Constituição de 1976, com todas as revisões, está praticamente a actuar quase como um protoparlamento com o modelo de Westminster, o modelo inglês, em que o Parlamento é o centro da vida política. Isto não acontecia no passado. O Parlamento foi secundarizado durante décadas na nossa III República.

É possível reforçar mais o papel do Parlamento, até como forma de aproximar os cidadãos da política?

Nosso quadro constitucional é possível. Isso depende muito dos partidos, depende muito da capacidade que os partidos têm de enriquecer o Parlamento com gente competente, não com pessoas do aparelho, não para pagar dívidas de lealdade, quem colou muitos cartazes nas campanhas eleitorais, mas chamando pessoas que possam trazer o seu conhecimento, o seu "know-how", a sua experiência profissional para a Assembleia da República.

O que é que nos falta? Falta-nos, sobretudo, a consciência de que não vamos a parte nenhuma se tivermos um Parlamento que funciona na lógica apenas da esquerda e da direita. Neste momento, uma grande tarefa do Governo, mas também da oposição, é de tentar chamar para o espaço da governação, que actualmente é partilhado por um partido que governa e dois ou três partidos que o apoiam. Mas nós precisamos de ter no espaço da governação também o CDS-PP e o PSD.

Mas há uma fractura muito grande…

Isso tem a ver com uma liderança que ainda não se adaptou a esta situação, como as pessoas depois de uma refeição indigesta demoram tempo. Já passaram muitos meses e a liderança, nomeadamente do PSD – penso que está a digerir pior do que o CDS-PP –, tem de compreender que o PSD é um partido demasiadamente importante na história portuguesa e no futuro de Portugal para poder estar amuado.

O PSD tem de dizer o que é que pensa sobre a evolução da relação portuguesa no quadro europeu, do Tratado Orçamental, tem de dizer se acha que é realista aquilo que o Tratado Orçamental propõe para Portugal, tem de ser capaz de criticar o Governo, mas também tem de ser capaz de o apoiar quando for razão para tal. Não pode ficar amuado à espera, como aconteceu agora no Orçamento em que não apresentou nenhuma proposta de emenda, nem de alteração, como se fosse um menino ou uma equipa de futebol que foi penalizada pelo árbitro. O árbitro chama-se Constituição e é soberano.

O novo Presidente da República pode ter aqui um papel importante?

Os portugueses conhecem Marcelo Rebelo de Sousa há 40 anos e se há alguma coisa que é absolutamente de esperar é que Marcelo Rebelo de Sousa seja um Presidente activo. Ninguém está a ver Marcelo a ficar quieto em Belém, a não ser por motivos de saúde. Se as linhas mestras da sua intervenção, os valores e princípios de orientação que foram apresentados no discurso de tomada de posse em 9 de Março forem coerentes com a realidade, ou se a realidade for coerente com esse discurso, vamos ter, certamente, um Presidente que vai fazer todo o possível para unir os partidos e para criar pontes e plataformas de diálogo entre Governo e oposições, porque hoje "oposição" não se diz no singular.

Temos um Governo minoritário, temos partidos que apoiam numas coisas, mas não apoiam noutras e vamos ter situações, como já tivemos, em que o Bloco de Esquerda e o PCP estão de um lado e o PS, PSD e o CDS estão noutro. Vamos precisar de um Presidente muito activo, talvez até hiperactivo, para conseguir manter a circulação e fazer de uma espécie de polícia-sinaleiro destas estradas que vão andar muito congestionadas, sempre em hora de ponta.

O Governo é agora mais escrutinado pelo Parlamento, mas a sua acção está muito condicionada pela Europa. Há um problema de soberania?

Há, sem dúvida.

Ainda esta semana o Governo contrariou um comissário europeu sobre a necessidade de novas medidas de austeridade?

É um problema de semântica sério. Temos aqui um problema da construção europeia e do impasse em que estamos. O projecto europeu implica partilha de soberania. Quando criámos a moeda única, todos os 19 países do euro transferiram para o Banco Central Europeu a soberania e a soberania capital, a soberania monetária, a capacidade cambial de desvalorizar a moeda, tudo isso, neste momento, não pertence à Alemanha, a Portugal ou a Espanha, pertence ao BCE, a um banco central independente, e é natural que todos nós tenhamos obrigações contratuais.

Mas há aqui uma diferença fundamental. É que esta união monetária é absolutamente mal feita, há aqui problemas de engenharia. Imagine que encomendámos uma ponte a uma empresa e essa empresa fez uma ponte errada. Em qualquer sistema do mundo civilizado a empresa que fez a obra vai ter que fazer uma segunda obra e nós temos que ser ressarcidos não pagando mais. O que está acontecer é que o euro está a reconstruir-se mal, devagarinho e só uns membros do clube é que estão a pagar a conta. Os países como Portugal, Irlanda, Grécia, Chipre e Grécia são os países que estão a pagar a conta de uma construção errada e isso não pode ser.

Neste momento, o que nós temos não é uma partilha de soberania, é uma usurpação de soberania. E evidentemente que o senhor Pierre Moscovici [comissário europeu dos Assuntos Económicos] não vai à Alemanha dizer ao Governo alemão que não podem ter um excedente externo de 8% do PIB como têm, que vai contra todas as regras. Já se viu alguma vez o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, ir a Berlim dizer: "Estão a criar uma política terrível de desequilíbrio interno e externo". Não, ninguém diz isso. Temos aqui um problema de recuperação de soberania, [mas] penso que se nós tivermos de recuperar completamente a soberania nacional isso será num quadro terrível, num quadro de extrema necessidade...

A saída do euro...

E não é o melhor para Portugal, não é o melhor para os portugueses, não é o melhor para a Europa. Nós temos é de usar a democracia e os princípios da democracia para construir a união monetária e não fazer uma união monetária para ricos, para remediados e para pobres, que é o que está a acontecer. Neste momento, as regras da união monetária são regras para cidadãos e metecos, um bocadinho no modelo da democracia antiga ateniense que era baseada na escravatura. Não podemos consentir uma coisa dessas.

Por isso é que o PSD, lanço aqui este desafio, não pode ficar do lado errado, porque se a Comissão Europeia ataca o Governo não na base de nada de sensato, mas na base de uma prerrogativa de soberania usurpada, o lugar do PSD como partido português não é do lado da Comissão Europeia.

Seguro propôs mudanças na lei das incompatibilidades dos deputados. A contratação da ex-ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque por uma empresa de gestão de dívidas colocou o tema na ordem do dia. O Parlamento deve ir mais longe nessa lei das incompatibilidades ou corre o risco de deixar de fora pessoas que podiam ser importantes?

É muito difícil regulamentar ao detalhe, porque depois há resultados absurdos. O problema aqui, no fundo, é a existência de uma frágil ética pública. Aquilo que a deputada Maria Luís Albuquerque fez é uma coisa que revela, no mínimo, uma falta de senso e as críticas surgiram não inspiradas em facciosismo partidário, mas dentro do seu partido [o PSD] surgiram muitas vozes dizendo que não era correcto, não faz sentido, há uma incompatibilidade de interesses.

Até me atrevo a dizer que, mesmo que ela não tivesse sido eleita para esta legislatura, mesmo que estivesse na sua vida profissional, eu penso que é preciso respeitar um período de nojo, um luto, em empregos que envolvam empresas que tenham sido abrangidas pelas áreas que essa pessoa tutelou enquanto ministra. Nalguns países é dois anos, noutros é três, quatro anos, há aqui um mínimo de decência pública que importa respeitar.

Mesmo que legalmente a ex-ministra possa trabalhar nessa empresa, eticamente é questionável?

Isso é uma coisa que se aprende no primeiro ano de Direito, a diferença entre o que é justo e a justiça, o "quid jus" e o "quid juris". Durante séculos houve gente que lutou contra a escravatura, sendo a escravatura legal. Durante séculos houve homens que respeitaram as mulheres independentemente de a lei permitir que existisse abuso sobre elas. E é essa consciência que cada um de nós é soberano nesse domínio e é muito estranho quando as pessoas se comportam de forma frívola. A frivolidade é absolutamente insuportável na política.

Este livro de Seguro abre a porta a um regresso do antigo líder do PS à política activa?

É uma pergunta que tem de lhe fazer [risos], mas não fujo à pergunta. Na minha perspectiva, o que se passa aqui é o cidadão que foi durante três anos o potencial primeiro-ministro, porque era isso que se esperava que o PS fosse Governo, como é, mas com a liderança de Seguro e com uma vitória folgada nas eleições, que não aconteceu...

O que se passa é alguém, depois de um período de mais de um ano de silêncio, de reflexão, de estudo, regressa à esfera pública, mas penso que não para disputar lugares, não para desafiar o Governo, ainda por cima o primeiro-ministro [António Costa], para um combate na liça partidária, mas apenas para dizer que aqui está, que fez um contributo para um melhor conhecimento do nosso sistema constitucional, um contributo científico e que vai, certamente, continuar a dar contributos como cidadão. É uma pessoa muito nova. O que lhe poderá acontecer daqui a uns meses ou a uns anos? Não sabemos, mas ele também não sabe.