A Rússia é a potência que olha com mais interesse para os resultados do referendo no Reino Unido. A tese é defendida por Bernardo Pires de Lima e está inscrita no livro “Putinlândia”, acabado de publicar. É o primeiro ensaio português sobre um dos homens mais influentes do mundo: Vladimir Putin.

“A desagregação europeia valida a estratégia de Putin. Parece-me evidente”, sustenta o especialista em geopolítica e relações internacionais e antigo comentador da Renascença.

Na entrevista, Bernardo Pires de Lima, também autor de “Blair e o poder”, analisa as consequências do referendo britânico, quando muitos votantes pró-Brexit ponderam os efeitos da decisão. A sua vontade de castigar o "establishment"' europeu ficou fora de controlo e, agora, o incerto futuro ameaça.

A reacção da União Europeia também não ajuda: pede rapidez em vez de calma, esgotando as possibilidades do Brexit ser reversível. Aos britânicos não lhes agrada o "statu quo", mas não lhes foi ainda desenhado o quadro alternativo das consequências da não permanência.

Bernardo Pires de Lima pertence ao conjunto de académicos e politólogos, no limite, favoráveis a que os líderes políticos britânicos apresentem aos eleitores um claro estatuto alternativo para confirmar a decisão. Afinal, a mudança é tão substancial e a margem do referendo tão estreita que não deixaria de ser razoável a existência dessa ratificação (em Westminster ou eleições gerais).

Sem nunca perder de vista o Kremlin, “este é um livro que questiona os termos do projecto Putin de galvanização imperial entre a Europa e o Médio Oriente”, Bernardo Pires de Lima olha também para as presidenciais norte-americanas de Novembro e para um cenário com Putin no Kremlin e Donald Trump na Casa Branca.

O livro “Putinlândia” foi para a impressora antes do referendo, mas prevê que o Brexit seria desastroso para o Reino Unido e para a geopolítica mundial. Três semanas depois, a percepção acentua-se?

Sim. Não sei prever o médio e o longo prazo, mas a curto prazo há um efeito muito prejudicial na percepção do isolamento do Reino Unido. Em causa está o olhar do investidor estrangeiro e as consequências no clima económico, sobretudo na praça financeira londrina.

Pode haver o afastamento de muitos interessados nos serviços financeiros e na banca. Em Londres, quando lá acompanhei o referendo, já se sentia muita tensão no ar sobre as incógnitas dos dias seguintes.

A performance da Bolsa de Valores confirmou isso com perdas astronómicas e superiores ao que o Reino Unido iria poupar saindo do orçamento comunitário. Esse pessimismo confirmou-se.

A economia britânica será a principal vítima do Brexit. Outro risco é a iminência da desagregação do Reino Unido, enquanto estado unitário. Outra consequência é sobre a imprevisibilidade da gestão comunitária que tem sido errática e de punição.

Defende que o Brexit não está a ser bem gerido, em Londres como em Bruxelas, e que beneficia Putin?

Vê-se pela incapacidade dos vencedores do Brexit em gerir a vitória. Todos saíram de cena. Não tinham um plano para o dia seguinte. Não sabiam como gerir uma vitória. Gerir uma derrota é complexo, mas pressupõe-se que, em caso de vitória, haja um plano estratégico. Não havia.

No resto da Europa, há uma típica cacofonia de líderes que não estão à altura dos cargos no momento político que a Europa atravessa. Um momento que vai muito para lá do Brexit. Tem ciclos eleitorais incertos: na França, na Alemanha, no referendo da Hungria sobre refugiados, na incerteza política espanhola e na excessiva afirmação do Eurogrupo. Um momento que se estende também ao olhar das potências que observam e influenciam a política europeia.

Nesse sentido, a Rússia é a potência que olhou com mais interesse para os resultados do referendo no Reino Unido, porque a desagregação europeia é uma forma de validar a estratégia de Putin. Parece-me evidente.

Já lá vamos, antes o processo de sucessão de Cameron. Foi invulgarmente rápido. O que aguarda de Theresa May?

Espero que haja na senhora May um certo bom senso nas negociações com Bruxelas. É esse diálogo que vai determinar o lugar do Reino Unido no mundo. Mas não tenho grandes expectativas quanto ao sucesso dessas negociações e quanto ao perfil da senhora May para o cargo.

O sistema escolhido para a opção May foi hermético. Não se devolveu a palavra aos eleitores. Já correu mal na transição Blair/Brown, resultando na vitória dos conservadores ao fim de dois anos de Brown.

O momento que se atravessa pedia uma relegitimação por via de uma eleição geral. Candidatos que se poderiam bater pela inversão do resultado do referendo. Assim uma maioria pró-europeia em Westminster poderia sobrepor-se ao resultado do referendo. Recordo que referendo não é vinculativo, Legalmente não é vinculativo.

Mas Theresa May aponta para a irreversibilidade com a frase “Brexit é Brexit”...

Theresa May valida o referendo, mas também é verdade que Westminster vai discutir a petição que pede um segundo referendo no início de Setembro.

Theresa May vai à Convenção do Partido Conservador, em Outubro, com um discurso a procurar fazer a ponte no partido entre aqueles que estavam radicalmente pela saída, aqueles que votaram pela saída e estão, agora, arrependidos e, ainda, aqueles que estavam pela permanência.

De todos os candidatos, Theresa May é a personalidade que tem melhores condições para fazer a ponte interna entre as três sensibilidades em causa. A minha dúvida é saber se a senhora May é aquela tem melhores condições para inverter a tendência de saída e de negociar um bom acordo com Bruxelas. Um acordo que procure enquadrar o Reino Unido numa espécie de ‘modelo norueguês’, mantendo-se no orçamento comunitário e no mercado comum, mas não participando no processo político de decisão.

A senhora May não é uma entusiasta da União Europeia, mas também, pragmaticamente, sabe que os custos da saída do Reino Unido são muito superiores aos da permanência. Dentro deste quadro o pragmatismo pode imperar.

Neste momento, o que importa ao Reino Unido é ter um líder pragmático. Mas não só: importante também ter um líder da oposição com qualidade. Não está no debate, mas uma causa do resultado do referendo foi a falência da liderança de Jeremy Corbyn no Partido Trabalhista.

Acredita, então, no congelamento do Brexit?

Há muitas portas ainda abertas. Não há ainda uma definição concreta dos termos em que todo este processo vai ser encerrado. O referendo abriu debates, mas não encerrou nenhum. Debates no Reino Unido e debates na União Europeia.

Não posso, de uma forma intelectualmente honesta, excluir nenhum cenário, um deles a reversibilidade dos termos em que o resultado do referendo definiu a relação do Reino Unido com a União Europeia.

Outro cenário por definir passa pela negociação radical e rápida entre Londres e Bruxelas. Outra possibilidade ainda é a suavização das posições dos líderes das instituições europeias.

Os líderes vão ser obrigados a fazê-lo tendo em conta os sinais das praças financeiras, a instabilidade na zona euro, o debate dos refugiados na Hungria e o conjunto de pedidos de referendos que vão estar em cima da mesa.

Mas não só: temos ainda os resultados das eleições norte-americanas e a legitimação em Setembro nas presidenciais russas da agressiva política externa de Putin que tem estilhaçado a coesão europeia.

Como é que a História vai julgar David Cameron? Como o líder que favoreceu indirectamente Putin?

A história vai julgar Cameron como o líder que abriu a porta à retirada do Reino Unido da União Europeia por uma promessa eleitoral provocada pelo medo. Se essa porta será fechada ou não, não sei. Não me parece que se possa afirmar que directamente Cameron atribuiu a Putin uma vantagem objectiva e propositada no debate europeu. Esse é apenas um efeito indirecto das suas políticas.

Outra coisa foi Cameron desbaratar uma maioria absoluta no Reino Unido por medo do avanço do UKIP. A política do medo eleitoral e de não ter um partido que pensa a Europa de uma forma moderada – o radicalismo conservador acentuou-se nos últimos anos – paga-se caro.

Estão com os dias contados os líderes políticos responsáveis por governos e por famílias políticas moderadas e pró-integração europeia que apresentem como programa sinais de medo face ao crescimento dos extremos.

Era preciso muito mais coragem e discurso pelas vantagens da permanência - e não através do discurso do medo - para David Cameron ter sido um político à altura do momento britânico, e europeu, que se atravessa.

A História não vai ser propriamente meiga para Cameron, embora esteja ainda por redigir e não será totalmente meiga nesse sentido, porque não sabemos os termos do desenlace da relação entre Londres e Bruxelas. Agora, que Putin está a olhar para tudo isto de forma particularmente entusiástica, lá isso está.

No livro, defende haver gente como Marine Le Pen e Putin a tirar partido desta tensão. Como?

Em primeiro lugar, porque funcionam em rede partidária. O meu livro explora bastante essa dimensão de cooperação que, no caso da Frente Nacional francesa, até é assumida às claras.

O departamento financeiro do partido diz que não há problema nenhum em ir buscar dinheiro à Rússia para financiar campanhas eleitorais, até porque a banca francesa e comunitária não empresta dinheiro à Frente Nacional. Portanto, esta dimensão em rede estende-se a vários partidos do norte da Europa, da Escandinávia ao leste europeu, existe mesmo e é manobrada por Moscovo.

Há ainda uma dimensão ideológica que olha para o anti-americanismo como estrutural na sua legitimação interna. De facto, Putin tem percorrido muito bem esse caminho aproveitando esse sentimento russo. Trata-se de identificar no fantasma externo todas as culpas para os problemas internos, nomeadamente económicos. Exemplo: as sanções europeias pós-Crimeia.

Mas as sanções, uma cimeira, há dias, em Varsóvia e a NATO colada às fronteiras russas não são elementos que alimentam essa paranóia anti-Estados Unidos?

A vontade de pertencer à NATO pertence a estados soberanos que não têm de pedir autorização à Rússia. Estamos numa Europa pós-guerra fria, onde os estados tomam as suas decisões individualmente. Já o Leste europeu, ex-pacto de Varsóvia, sabe que fazer parte da Nato é a condição sine qua non para a democratização plena dos seus regimes. É o chapéu de segurança que dá condições para que os regimes se democratizem e permitam a adesão à União Europeia.

A NATO não pode estar condicionada pelos simbolismos dos lugares onde decorrem as suas cimeiras só porque o senhor Putin acorda de manhã para o lado errado. A NATO pode dialogar construtivamente com a Rússia? Pode, mas também precisa que a Rússia queira dialogar construtivamente com a Nato.

Quando Obama chegou à Casa Branca, em 2008, e encontrou Medvedev, no Kremlin, havia um enorme clima construtivo. A mudança tem lugar com o regresso de Putin. O preço do petróleo desceu e teve consequências na Rússia. De 2011 a 2013 registaram-se manifestações nas grandes cidades contra Putin. Com a imagem em queda Putin invade agressivamente a Ucrânia, recupera a Crimeia, chegando agora aos 80% de popularidade.

Mais aliviar as sanções à Rússia não seria um gesto simpático do Ocidente?

No Ocidente, todos já disseram que as sanções acabam no dia em que o processo de Minsk – o roteiro de paz para a Ucrânia – for cumprido pela Rússia. Está tudo nas mãos do governo russo. O Ocidente não pode deixar que as suas decisões sejam condicionadas a um nível extremo (porque condicionadas são sempre) pelo comportamento russo.

Uma atitude de Moscovo que é revisionista nos acordos pós-guerra fria e agressiva na invasão de países soberanos. É preciso estabelecer limites porque às tantas, como lhe chamo no livro, a Europa é uma enorme “Putinlândia”.

A Rússia é, evidentemente, um actor preponderante na história europeia e vai continuar a sê-lo, mas é preciso traçar limites. A política externa russa é agressiva, altamente beligerante e violadora de protocolos que minam as democracias ocidentais.

Putin vai sair reforçado nas presidenciais de Setembro. Nas presidenciais de Novembro dos EUA, há incógnitas. Putin/Trump é um cenário a temer?

É um cenário realista. Acho que a aritmética do colégio eleitoral não vai beneficiar Donald Trump, mas não vou dizer que Trump não tem condições para vencer as eleições.

Vencendo Trump, a relação com a Rússia de Putin seria provavelmente de aproximação ideológica. Trump seria um promotor do fim das sanções à Rússia. Trump seria um desagregador da NATO. Trump seria um desagregador da União Europeia. Trump fecharia os olhos a acções russas no exterior.

Trump criaria – e este é o ponto mais importante – uma enorme clivagem institucional dentro dos Estados Unidos em várias frentes: quer com o sector militar, quer com o establishment da política externa dos dois partidos, quer com o Congresso, quer com o Supremo Tribunal, ou seja, seria uma anarquia interna.

O senhor Trump não é apenas e só um perigoso radical com dislates - a torto e a direito - em campanha eleitoral, mas é também alguém que coloca verdadeiramente em causa os alicerces do constitucionalismo norte-americano de mais de 200 anos.

Mas o sistema não tem válvulas de segurança para prevenir um caso Trump?

O sistema está montado para prevenir o poder absoluto dos "Trumps" que surjam, mas na história recente no pós guerra não há exemplos de alguém com as características do senhor Trump.

Portanto a imprevisibilidade institucional e constitucional está ao virar da esquina com uma eventual presidência Trump e com os vários realinhamentos que implica no plano internacional.

Porque Trump incentivou o Brexit, nunca criticou a Frente Nacional de França e não tem um discurso agressivo contra Putin.

Trump obrigaria a um realinhamento desta Europa?

Evidentemente. O que a Europa precisa é de mais Estados Unidos na Europa. Estados Unidos que consigam influenciar os vários debates europeus desde os refugiados até às políticas de austeridade.

Estados Unidos que o iriam fazer dando coesão, como nas últimas décadas, através do seu compromisso com a segurança e o seu peso diplomático. Um peso que completa o puzzle com/e entre as grandes potências europeias.

Hillary Clinton tem melhores condições que Trump para influenciar a Europa?

Não sei. Os termos desse debate estão por fixar. É uma questão que está em aberto. Acho que a realidade europeia já está a bater às portas dos Estados Unidos e Hillary Clinton será obrigada a reequilibrar a sua visão para o Pacífico com uma visão para a Europa.

A incógnita resulta dos termos em que fará esse reequilíbrio.

Tanto quanto o exercício futurista o permita, como vê o poder de Putin na próxima década?

Antecipo esse poder na linha dos últimos 2, 3 anos. Putin vai camuflar problemas internos (falta de financiamento das empresas, preço do petróleo, custo de vida) e vai consolidar um certo absolutismo parlamentar e político com a corte putinista.

Esta gestão interna vai obrigatoriamente conduzir a uma grande agressividade na política externa. Será agressivo na Europa, mantendo a Ucrânia e a Geórgia em lume brando, não tendo qualquer comportamento construtivo para com o Ocidente.

Putin irá também, aproveitar eventuais ciclos eleitorais (França, Holanda e eventual presidência Trump) para moldar o sistema internacional a seu favor.

Repare-se na acção presidente chinês ou no presidente turco: inscreve-se num sistema internacional que está a valorizar o tipo de exercício de poder de Putin.

O meu livro é muito sobre o tipo de exercício de poder numa Rússia gigantesca territorialmente, em declínio demográfico e económico, e à procura de camuflar debilidades internas com uma agressividade que valoriza o exercício do poder de Putin.

Agora, muita da contestação a este tipo de poder vai surgir do interior da Rússia. Há já uma nova geração russa que não se revê neste tipo de poder de Putin.