Lisboa não é o Canadá. E ainda bem. Numa escola do Canadá, país próspero, híper civilizado, esclarecido e tudo o mais, Suzy Kies, ativista da cultura do “cancelamento” e membro do partido do primeiro-ministro Trudeau, levou a cabo uma cerimónia de queima de livros, destinada a “enterrar as cinzas do racismo, da discriminação e dos estereótipos”. Das estantes para a fogueira (um belo exemplo de vandalismo para as crianças que assistiram ao ritual!) foram vários álbuns de banda desenhada de Tintim, o herói criado pelo belga Hergé. Ali, nos EUA e noutras paragens, sempre em defesa do “índio”, do “esquimó”, dos “peles vermelhas”, dos “pretos”, ou contra a “sexualização de mulheres indígenas” (hoje chamados “primeiros povos”, de preferência a “nativos”), já se censuraram ou fizeram desaparecer Astérix, Lucky Luke ou Pocahontas. E também as figuras da Walt Disney ou da Marvel Comics foram passadas pelo crivo da desconstrução de qualquer sombra de “masculinidade tóxica”.

Em Lisboa, este vento de loucura ainda não sopra com toda a intensidade. Por isso, o visitante pode (e deve) ir à Fundação Gulbenkian onde está patente uma maravilhosa exposição sobre o mundo de Hergé e de Tintim, com direito ao icónico foguetão axadrezado nos jardins. Se estivéssemos no Canadá, já haveria acusações à Gulbenkian de estar a promover um desenhador “racista” e, talvez, manifestações à porta, com pichagens na parede e insultos na bilheteira. Porque é assim que os censores “iluminados” de hoje se comportam. Queimar livros de outros tempos, com outras ideias e que falam de outros mundos não é só (e isso já seria desqualificador) reificar um gesto medieval, inquisitorial, nazi-fascista ou comunista; é, na verdade, uma atitude totalitária, contraproducente e profundamente ignorante.

É totalitária porque impõe, do nosso fugidio presente a todas as eras sedimentadas da história, um cânone parcial, ativista, sectário, que se sabe onde começa, mas que, pela sua própria dinâmica de tábua rasa desrespeitadora do passado, não se imagina onde e como acabará. No limite, tudo, no passado humano, pode ser desconstruído e negado, porque o passado, como se diz em história, é um “país diferente”. A cultura woke é um novo jacobinismo: não entende a linearidade evolutiva do tempo, os valores contextuais de cada época, a lógica de compreender, em vez de julgar com anacronismo. Ali não há passado: só um presente vingador, incapaz de preparar um futuro com raízes.

É contraproducente, porque, muito mais “pedagógico” do que qualquer queima é…a leitura do que (erradamente) se queima. Se queremos discordar (de maneira civilizada) temos de conhecer. É por isso que o repúdio do nazismo requer a leitura do Mein Kampf e a do comunismo a do Livro Vermelho, tal como poderá ser lendo (e vendo) Tintim que a miudagem será introduzida no universo do eurocentrismo em que Hergé se movia, na sua Bélgica natal das décadas centrais do século XX. A queima não “purifica”; só obscurece, alimentando tribalismos.

Resta que mandar queimar os álbuns de Tintim sob a acusação de que são mostruários da perversidade racista do Ocidente é atitude ignorante – a roçar, diga-se mesmo, a estupidez.

Para os wokers que se dizem arautos da interculturalidade e do necessário respeito e abertura do europeu branco ao “outro”, aconselho vivamente que leiam (e apreciam a genialidade do traço e da cor), o álbum O Loto Azul e a lindíssima lição humana de empatia ali dada pela amizade entre Tintim e Chang, o jovem chinês que reaparecerá noutra aventura, a de Tintim no Tibete. Leiam, deleitem-se, pensem e aprendam, em vez de serem obtusos e de queimarem livros!