Em 1892, na ressaca de um trauma nacional (o ultimato britânico), de um sobressalto de regime (a tentativa de revolução republicana no Porto), de uma bancarrota financeira (resultado da falência do fontismo), e de um estado de exceção político (os governos extrapartidários de salvação nacional empossados por D. Carlos), o poeta António Nobre, ícone maior do simbolismo, do decadentismo e do saudosismo finisseculares portugueses, escreveu, na sua coletânea de textos «Só»: “A vida antiga tinha raízes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa época é horrível. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós, entre ruínas, à espera…”.

Como tantos outros do seu tempo, e de todo o tempo decorrido desde o “vencidismo” da Monarquia aos desiludidos da República (do Orpheu em diante), António Nobre precisava de (algumas) certezas para se conduzir na vida, e nunca as encontrou – ou porque não soube, ou porque a época era de radical incerteza.

Lembro-me destas palavras ao ouvir as ritmadas aparições televisivas de Marcelo Rebelo de Sousa, de António Costa ou das “autoridades” da saúde. Não sei se são alocuções à nação, conferências de imprensa, explicações televisionadas, monólogos técnico-sentimentais ou puros dislates (como a sugestão do “Natal ao pequeno-almoço” e da troca de compotas do homem da DGS!).

A pandemia criou um estado de exceção que é mais profundo do que aqueles que a legislação vai materializando e calibrando ao ritmo dos números e dos mapas. E os grandes decisores estão tolhidos por uma névoa, tateando, à procura de raízes, de alicerces, de algo conhecido que desapareceu – a normalidade da vida –, sem previsão de quando voltará.

O número de infetados, recuperados, internados e ventilados é mensurável. O mal maior está no que não conseguimos medir: a crise de cansaço de todos os profissionais de saúde e gente de primeira linha do combate ao vírus; a crise de enormes segmentos da economia real; a crise de motivação de muitas profissões remetidas para o gueto do teletrabalho; a crise de vocações que assola, silenciosamente, tantos jovens estudantes que tentam aprender o normal com a cabeça presa pelo anormal; a crise de exaustão psicológica de todos; a crise política do Estado, hesitante no que fazer e impotente para acudir a todos. Não sei se os governantes portugueses de 2020 poderiam fazer diferente e/ou melhor. O que sei – percebemo-lo todos – é que a radical incerteza em que mergulhámos desfez expetativas, esperanças e seguranças, e que esse céu de chumbo sobre as nossas cabeças, esse contar dos dias à espera nem bem sabemos do quê é absolutamente corrosivo para a sociedade, para a política e para a vida. E assim vai terminar este estranho ano de 2020.

Quem manda diz-nos que não é hora para críticas, divisionismos ou dúvidas. Se a pátria está em perigo e em combate todos têm de combater. Era o que os republicanos afonsistas diziam durante a I Guerra Mundial ou o que o salazarismo exigia durante a Guerra Colonial, e os resultados não foram famosos. Quando a pandemia passar, talvez reparemos que a suspensão do pensamento, da crítica ou da diferença nos deixou civicamente mais pobres e com uma democracia formal nas aparências, mas oca de sentido, de vida, de mobilização, de pertença. E talvez nos consciencializemos de que a pandemia agravou o mal, mas que, pela extensão do estrago, ele já vinha de há mais tempo. Entre o monismo dos que mandam, o calculismo dos que espreitam e o tribalismo dos que estão de fora, é a vitalidade de Portugal que hoje parece adormecida ou (com eleições à porta) improdutivamente disputada.