Há um mês, quando Pedro Passos Coelho se retirou da cena política, fiz aqui um pró-memória das circunstâncias e realizações do seu governo. Não era minha intenção voltar a falar dele tão proximamente. Mas não resisto a fazê-lo perante a vozearia mais recente. O pretexto foi o anúncio de que Passos iria refazer a vida regressando à docência universitária. Os zelotes de serviço levantaram logo uma barragem viral de críticas: que o homem não pode ser professor, que não tem nada para ensinar (ou ainda pior, que iria ensinar doutrina “neoliberal”), que é um escândalo a equiparação a catedrático, que houve nepotismo no convite do ISCSP, etc.

Para a esquerda, Passos deveria ir… não se sabe bem para onde! Se fosse para um cargo internacional, era indecoroso, depois dos males infligidos à pátria; se fosse para a vida empresarial, haveria compadrio; se fosse para a consultoria, era para ser lobista, como Paulo Portas; se fosse para um banco, seria para encher os bolsos, como Durão Barroso. Se, por hipótese absurda, ele decidisse montar uma banca de venda de castanhas assadas no Rossio, o PCP logo o denunciaria por concorrência à classe operária, o BE por estar a ofender a “cultura identitária” dos(as) verdadeiros(as) vendedores(as) de castanhas, e o PS mandaria a ASAE fiscalizar-lhe o negócio! E por aí fora…

O problema não é Passos ir para o ISCSP, ser equiparado a catedrático, ou ter ou não currículo. O ISCSP faz muito bem em recrutá-lo. A ser catedrático, será como convidado (como outros ex-políticos, de diferentes partidos, o foram ou são), e não com um ordenado de exclusividade, e não pertencerá nunca à carreira docente. Experiência prática, ao mais alto nível da vida pública e política, não lhe falta, e as universidades também recrutam destes especialistas. Quanto à precariedade contratual que abunda nas universidades, ela é, sem dúvida, assunto importante; mas deve ser tratado noutra sede. A esquerda sabe isto. E aos mais esquecidos convém lembrar que Passos já deu aulas no ensino superior (no ISCE, durante cinco anos), e que, em 1999, não pediu a subvenção vitalícia a que tinha direito por lei, quando encerrou a sua carreira de deputado, não tendo hoje esse rendimento. Da sua biografia só se diz o que convém.

A contratação universitária é apenas um pretexto para continuar a denegri-lo. Passos Coelho já não é, politicamente, nada; mas continua a ser a obsessão dos muitos que, na política, se sentem ensombrados ou ameaçados pela sua vitória eleitoral em 2015. Para além disso, parece que em Portugal a meritocracia só pode estar à esquerda. Há dias, a propósito deste caso, alguém clamava que só a esquerda providenciara figuras com relevância internacional (Soares e Guterres), obliterando que Freitas do Amaral foi Presidente da Assembleia Geral da ONU e Durão Barroso Presidente da Comissão Europeia. E vale a pena lembrar outro exemplo, conhecido, deste enviesamento moralista – e elitista, com o que há de irónico em o elitismo preconceituoso estar à esquerda. José Saramago, militante do PCP, foi de serralheiro mecânico a Prémio Nobel da Literatura: ascensão notabilíssima (e é verdade). Cavaco Silva, militante e líder do PSD, foi de Boliqueime a Primeiro-Ministro e Presidente da República: ascensão ínvia ou imerecida, que nunca apagou nele o provincianismo e a incultura (o que não é verdade). Pretensa dona da meritocracia, a esquerda é muito seletiva e maniqueísta, e pouco igualitária, afinal, na avaliação alheia. Onde é que já se viu um professor universitário ser liberal e viver em Massamá? Não: para receber a aprovação dos bem-pensantes, Passos Coelho precisaria, no mínimo, de confessar em público um “mea culpa” e talvez mudar-se para uma luxuosa casa na Rua Castilho…