Na cultura política portuguesa há a perniciosa mania de tentar resolver problemas lançando-lhes em cima uma lei, como se o papel com palavras se encarregasse de alterar a realidade. Sobre isto, que é transversal a todos, há uns governos mais legiferantes do que outros… e nem sempre como devem.

Daqui a semana e meia decorrerão eleições autárquicas. A abstenção é um problema? A “geringonça” vai contabilizar os faltosos e, plena de voluntarismo metediço, nas eleições seguintes não haverá jogos de futebol, para que a paixão clubística não tolde o dever democrático.

Que a abstenção é um problema – não exclusivamente português – é patente. Nas autárquicas de 2013 chegou-se à taxa recorde de 47,4% (mais 6,4% do que em 2009 e mais 8,4% do que em 2005). As eleições europeias de 2014 tiveram uma abstenção de 66,2%, as legislativas de 2015 de 44,1% e as presidenciais de 2016 de 51,3%. Em eleições nacionais, praticamente um em cada dois eleitores portugueses não vai à urna, num total de c. 4,75 milhões de abstencionistas. As razões para tal são diversas e alimentam há muito o debate na teoria e na sociologia políticas. Mas os seus elevados valores e, sobretudo, a tendência, de há anos, para o seu crescimento só pode significar que, para muitos, votar deixou de ter significado, de valer a pena, porque nada de substancial muda na vida pública, central ou local. A distância entre governados e governantes, produto de um debate público pobre de atores e histérico de argumentos, é hoje maior do que nunca e é por aí que espreita a crise das democracias.

A intenção de António Costa – a concretizar-se – de combater a abstenção proibindo o futebol em dia de eleições pode até ter sido bem-intencionada, mas será infrutífera e é em muitos aspetos disparatada. Os contra-argumentos abundam: o ato governamental é invasivo da liberdade de cada um e infantilizante para a sociedade civil; os jogos só duram hora e meia; o voto não é obrigatório; ou o proibicionismo, a existir, deveria estender-se a muitas outras atividades – e não se vê como o governo possa (ou deva) fechar centros comerciais, praias, jardins, esplanadas, cinemas, museus, igrejas ou almoços de família e outras distrações domingueiras. O caso já virou anedota e arrisca ser risível. Por princípio de higiene pública, política e futebol devem estar separados. Da violência das claques, do submundo do hooliganismo, das corrupções no sistema ou da imoralidade dos agentes, o governo lava as mãos, a justiça logo atuará e a Liga é que manda; mas para fechar estádios nos domingos da democracia, lá estaria uma lei. E depois, quando se descobrisse que mesmo sem futebol o português continua a não votar, o que se seguiria? Se não for pelo regime do voto obrigatório (que alguns países têm, que alguns políticos portugueses defendem e cujas vantagens e inconvenientes não cabe aqui aprofundar), ou modernizando e flexibilizando as formas de votar (por via eletrónica, antecipada ou sem adstrição ao local de recenseamento), não se vê como obrigar ou facilitar a participação eleitoral.

A proposta governamental é inútil (se não for contraproducente) – mas deveria fazer-nos pensar nas razões gerais do abstencionismo. Na “geografia dos afectos pátrios” (um título historiográfico de Fernando Catroga), por que razão cada adepto é mais fiel à sua “pátria” clubística do que à democracia pátria? E os que até nem gostam de futebol, que outras “pátrias” os movem, e porquê, que não Portugal ou, daqui a uns dias, o destino próximo da sua cidade? Moral da história: não é com expedientes de secretaria que se recuperam eleitorados; e porque o voto é livre, será necessário convencer, com melhores maneiras, os portugueses a cumprirem o seu dever cívico.