"Accountability" é uma palavra inglesa que podemos traduzir por "responsabilidade". Mas trata-se de uma tradução literal, que não expressa, em português, o sentido mais nobre, ético, de transparência, rigor e autoexigência que o termo assume nas democracias britânica ou norte-americana. A verdadeira "responsabilidade" dos governantes releva do elevado serviço cívico que prestam, quando titulares de um cargo público: e quanto mais alto este é, mais exigente é a "accountability".

Tudo parecia bem no mundo otimista da "geringonça" até a realidade o atropelar. Veio primeiro a tragédia do incêndio de Pedrógão Grande; depois, a história rocambolesca do assalto e roubo dos paióis de Tancos; finalmente, a revelação das centenas de milhares de euros em cativações com que o governo conseguiu reduzir o défice e tirar o país do PDE. O último mês deve ter lembrado a António Costa a velha máxima de que um mal nunca vem só. E a acumulação de males parece ter abalado definitivamente a imagem beatífica de um governo até aqui insensível ao desgaste ou ao fracasso. A sorte de António Costa é que Catarina Martins e Jerónimo de Sousa se aburguesaram, comprometidos na "geringonça", e acham tudo mais ou menos normal: faltou a chuva em Pedrógão, as armas sumidas de Tancos não hão de fazer muito mal e as cativações foram o expediente para as devoluções e para nos tentarem convencer que a horrenda austeridade do teimoso Passos Coelho tinha desaparecido. Não espanta, mas entristece e revolta a forma hipócrita como alguns fazem política. Se fosse a direita a estar no governo, Passos não poderia pôr o pé na rua. Sendo a esquerda, Costa até pode ir de férias para Espanha. Por acaso, até pode ir – é um seu direito; não tenho a certeza é que devesse ter ido por estes dias, ao menos por respeito aos portugueses que andam a tentar reconstruir a vida em Pedrógão Grande e arredores.

António Costa é um caso político interessante. O ar bonacheirão e otimista faz às vezes lembrar Mário Soares. E com o respaldo dos afetos presidenciais, apostou em governar em condomínio com Belém, afagando o ego dos portugueses e achando que o discurso faz a realidade: desde que se diga que tudo vai melhor e que, sobretudo, se insista que dantes tudo ia mal, a maioria convence-se disso. Mas Costa, se lembra por vezes Soares (até na leveza com que plana sobre alguns dossiês), não tem o currículo nem a coragem do velho fundador do PS. Quando a realidade lhe estraga a retórica, hesita, tergiversa, sacode responsabilidades e empurra para a frente, tentando que não (lhe) estraguem muito o quadro. A sondagem pedida a um "focus group" para avaliar a sua imagem depois de Pedrógão Grande é uma imoralidade e define-o como poucas coisas.

Na hora do aperto (e com a conivência do Presidente Marcelo) o Primeiro-Ministro adota a técnica de perguntar, de perguntar muito, muitas coisas, a muita gente, jurando que nada ficará por se saber – sobre os fogos, o SIRESP, os militares e o mais que venha. Perguntar é fazer prova de existência. É óbvio que o Primeiro-Ministro e os seus ministros não podem saber tudo o que se passa nas suas áreas de tutela. Ainda assim, todavia, não deveriam saber um pouco mais? E, perguntam os cidadãos, quando é que, além de lançar perguntas, vai o governo começar a responder? Perguntar, perguntamos todos, os que não governamos. A função de quem governa consiste em responder, com o rigor, a exaustão, a transparência e a rapidez que os recentes e graves casos exigem. "Accountability" é isso mesmo; sem isso, a democracia é mera retórica. Esperemos bem que não seja!