Dentro de pouco mais de uma semana, Portugal, ou mais precisamente o Santuário de Fátima, voltará a receber uma visita papal, a sexta da sua história, depois de Paulo VI, em 1967, de João Paulo II em 1982, 1991 e 2000, e de Bento XVI em 2010. Em 2017, o Papa Francisco vem solenizar o centenário das aparições e, não menos importante, canonizar Jacinta e Francisco, conferindo ao ocorrido em 1917 mais um selo de importância acrescida no panorama do catolicismo e do cristianismo globais.

As aparições de Fátima são matéria de crença e tema de história. A primeira é individual e releva, em cada um dos que acreditam, de um “sensus fidei” muito presente e sempre renovado na Cova da Iria; a segunda é factual e colectiva, naquele sentido em que a narrativa de Fátima se impôs não apenas à Igreja (como dizia o Cardeal Cerejeira), mas também à história. Surgidas no contexto muito particular, apocalíptico, de 1917, no auge da I Guerra Mundial, de uma aguda crise política, económica, social, mental e existencial, e de um recrudescimento, no Portugal republicano do tempo, do confronto entre o profano e o sagrado, as aparições transcenderam o seu momento e o seu local para se tornarem uma realidade histórica estruturante dos últimos cem anos.

Por um lado, os acontecimentos de Fátima foram fundamentais no desfecho do próprio regime republicano e na evolução do catolicismo e da Igreja nacional, na sua relação com o Estado (e vice-versa) ao longo do século XX. Por outro lado, e extravasando fronteiras, a “Lourdes portuguesa” tornou-se o maior acontecimento religioso da 1.ª metade do século XX (o Concílio Vaticano II seria o maior acontecimento da 2.ª metade), produzindo o que muitos, por todo o mundo, encaram como a mais significativa manifestação divina na era contemporânea. A relação da Santa Sé com Fátima, aliás, excede em muito as visitas papais ao Santuário, remontando, pelo menos, a Pio XII, durante e logo depois da II Guerra Mundial.

Em 1917 e nos anos seguintes, Fátima constituiu uma gigantesca irrupção do sagrado e da religiosidade popular, que desorientou o jacobinismo ou o positivismo republicano e que surpreendeu até a hierarquia eclesiástica.

O tempo resolveu a convivência “política” entre Estado e Igreja – do salazarismo à democracia, passando pela revolução – e a integração daquele culto mariano nas devoções da Igreja Católica portuguesa e internacional. Para os crentes, a mensagem de Fátima segue sendo o que Nossa Senhora revelou aos videntes: admoestação e advertência, mas também consolo e esperança, caminho (d)e redenção.

Para os não crentes – e em nome da liberdade religiosa – o Santuário, os seus rituais e as suas gentes devem ser respeitados. É isso que felizmente ocorre em Portugal, em democracia e em ambiente de tolerância. Recorrendo aos termos da recente carta da Conferência Episcopal Portuguesa, publicada a propósito do centenário das aparições, a mensagem de Fátima reifica, a cada ano que passa – e se calhar cada vez mais, à medida que os anos passam – um apelo a um humanitarismo ético e solidário importante num mundo tantas vezes dominado pela “arrogância racionalista e individualista”, pelo “egoísmo indiferente e subjetivista”, pela “economia sem moral” e pela “política sem compaixão”. Que tantos procurem e recolham antídotos contra estes males na Cova da Iria deve ser visto como um bem.

A fé cristã é uma ascese interior e toda a ascese interior é um melhoramento humano. Nos dias que correm, melhores seres humanos são um capital imprescindível para o mundo. Será isso, no fundo, o que o Papa Francisco, como crente e peregrino, virá dizer em Fátima. E quem é que não concorda com isto?