O presente de Mário Soares terminou no último Sábado, aos 92 anos e um mês de vida. Resta, desse ínclito português do século XX, o passado, que Soares viveu e construiu, e o futuro, ou seja, o legado dessa mesma vida, que a Portugal competirá honrar. Quase tudo já se escreveu sobre Soares, e não apenas nestes dias – mas muito ainda se virá a apurar, a decantar e a escrever. Esta crónica é apenas um gesto cívico de homenagem.

Não há dúvidas de que a história de Portugal (e mesmo a história internacional), deverá reservar um lugar cimeiro para Soares – “o” Soares, o “bochechas”, o homem das sete vidas políticas, cuja coragem, determinação e vontade nos deram um novo país, e cujo estilo bonacheirão, “fixe” e empático foi precursor de uma certa política de afectos.

Da campanha de Norton de Matos, em 1949, ao exílio sob o marcelismo, no início dos anos 70, Soares foi um lutador incansável pela liberdade. Entre 1974 e 1976, foi o rosto e o obreiro maior da democracia portuguesa, garantindo, por cá, que seria “Kerensky” a vencer “Lenine” (e não o contrário), e que a “revolução de Fevereiro” (em Abril), não seria engolida e anulada por nenhuma “revolução de outubro”. Entre 1976 e 1985, no poder, fazendo, ou na oposição, ajudando a fazer, foi ele o maestro da normalização democrática, com tudo o que ela implicou: a supremacia da legitimidade eleitoral, em 1976, o “socialismo na gaveta”, em 1977, o combate ao presidencialismo eanista, em 1978-79, a oposição à AD e a negociação da revisão constitucional, em 1980-82, o Bloco Central e a austeridade, em 1983-84, e, finalmente, a “Europa Connosco”, desafio visionário que o guiou (e nos guiou) para o então eldorado da CEE.

A épica vitória nas presidenciais de 1986 foi justiça poética. Freitas do Amaral teria feito um bom lugar, mas Mário Soares merecia, como nenhum outro, presidir à República que ele próprio (re)construíra – e foi ele, primeiro civil em Belém depois de seis décadas, que inventou a “magistratura de influência”, as “presidências abertas”, a “coabitação” (não sem atritos com o cavaquismo, durante o seu 2.º mandato), e tudo o mais que definiu a prática presidencial desde então.

No auge da sua carreira política, Soares teve a sorte de viver tempos apaixonantes, de mudança e esperança, em que tudo estava por fazer e em que a política era, de facto, um turbilhão de ideias novas, de debates e controvérsias largas, de rupturas e consensos nacionais. Soube, como ninguém, fazer a história, em vez de apenas a ver passar, e fazê-la como estadista, com os olhos postos num horizonte de longo prazo. Sim, a partir de 1996, depois de uma década em Belém, podia ter-se reformado.

Mas Soares foi, até ao fim, visceralmente, um (grande) político. A irrequietude e o radicalismo dos últimos anos poderiam ter-lhe sido desaconselhados. Mas até nisso ele demonstrou ser um espírito livre e indomável. Percebe-se, recordando a sua personalidade e feitio, que o mundo de hoje – de um Ocidente crepuscular e amedrontado, de uma Europa burocratizada, de um Portugal pessimista e de uma política, em geral, reduzida à finança – já não era o seu mundo. Mas o que de melhor a liberdade, a democracia e a Europa nos deram tem a sua mão. E mesmo os seus críticos (a propósito da descolonização ou de outros temas) terão de lhe agradecer – porque é graças a Soares que existe o direito e a possibilidade de dizer mal de Soares. Talvez enfrentemos hoje a hipótese de muito daquilo por que ele se bateu estar em risco e poder não ser eterno. E é por isso que o seu exemplo de vida – uma vida cheia e feliz, como recordaram os seus filhos na tocante homenagem fúnebre – é o seu legado para a posteridade, para que a sua obra continue e inspire, transitando do passado para o futuro.