Na entrevista à revista do ‘Expresso’ da semana passada, António Zambujo invocou a sensação de caos da música de Tom Waits. A ideia não me saiu da cabeça, porque é isso mesmo: a “cavernosidade da voz” do Waits leva-nos para a soberania do caos. A voz do Waits é primordial, primitiva, é pré-Génesis. Imaginem que, na Bíblia, antes do Génesis, havia um livro sobre o caos aleatório de um mundo não criado. A voz desse livro podia ser a do Waits. É uma voz que assusta pelo caos e medo que lança sobre nós. É um medo que vem de um mundo não ordenado, ou não criado por Deus, ou não civilizado pela humanidade.

Estou a ler o “Absalão, Absalão” do Faulkner. A personagem central, Supten, podia ter como banda sonora este Waits caótico. Supten entra na vila imaginária de Faulkner, Yoknapatawpha, vindo dos confins da natureza, dos confins do faroeste; entra no estado de direito com todo o mistério violento do estado da natureza; mesmo quando não é violento, sentimos essa tensão no ar, essa capacidade para gerar caos. Se querem uma versão mais moderna de Supten, procurem a personagem de Tom Hardy na série “Taboo”: James Delaney entra na Londres vitoriana com esse sentido de caos que assusta a civilização.

Se Waits é o caos do mundo que ainda não conheceu a Revelação, quem é que podia simbolizar um mundo onde sentimos a certeza dessa Revelação? Há muitos candidatos, mas pensei logo no Nick Cave. A serenidade da voz do Cave é o oposto da rugosidade cavernosa de Waits. Quando preciso de paz e conforto, quando preciso de voltar a sentir aquela frase de Jesus, “não temais”, o Cave é um dos portos seguros. Garante-me a claridade de que preciso.

Quer isto dizer que um crente deve preferir a música que lhe traz a certeza da graça? Não. O temor perante o caos é fundamental. Sem caos não há vida, fé ou arte. Como diz Zambujo, “quando se pensa numa música também tem de se pensar num bocadinho no caos, não pode ser só passarinhos”. A nossa acção no mundo, seja limpar uma fralda ou escrever um poema, é quase sempre um esforço por arrumar a casa depois do caos provocado por forças muito superiores e que escapam à nossa capacidade de entendimento.