Esta é uma sociedade de famílias sem filhos ou de filhos únicos. Já dura há vários anos, e já nos habituámos a pensar as famílias assim. É esta realidade que cria um quadro mental que não contempla os dilemas das famílias com filhos, no plural. Temos visto esta tendência na quarentena. Já li e ouvi um cento de vezes a seguinte fantasia: "as famílias estavam muito separadas, a quarentena é uma oportunidade para nos encontrarmos ”. Ora, eu gostava que me respondessem a esta pergunta: como é que se faz um exercício espiritual de auto-encontro no meio dos tufos e tufões de cotão que rodopiam pelos cantos da casa? Como é que se encontra esse "eu" salvífico entre as pilhas de roupa e loiça por lavar? É antes ou depois dos jantares e banhos por fazer e dar, de estudar a planificação dos trabalhos de casa e das salas de aulas virtuais com respectivo desdobramento doméstico, das brincadeiras, das birras, da gestão dos conflitos entre irmãos? Como é que se faz o tal “lifestyle” da procura do “eu interior” quando, em cima da estiva paternal, temos de completar o nosso próprio trabalho?

Mas olhemos também para a forma como se impôs a escola à distância. Como é que se faz isso quando se tem dois ou mais filhos? Dois ou três computadores? Mesmo que existam dois ou três computadores, não existem dois ou três pais à disposição, visto que pelo menos um está a trabalhar na cozinha, ou deveria estar no computador, ou então está a estender a roupa, ou a tratar das compras da casa. E lembremo-nos também que muitos professores são pais, ocupados agora a controlar salas de aula virtuais, forçados a esquecer os seus próprios filhos. Para complicar as coisas, criaram regras arbitrárias, separando creches e jardins de infância das escolas primárias. Ninguém pensou nos pais que têm um filho na creche e outro na escola primária, dada a proximidade de idades. Ninguém se lembrou de que será mais fácil explicar diferenças destas a um adolescente do 11.º, mas não a crianças tão pequenas.

Em entrevista à Renascença e ao Público, o Ministro da Educação diz que o próximo ano lectivo poderá ser, na prática, uma continuação deste regime, com aulas presenciais e aulas à distância. Aliás, não diz nem deixa de dizer, lança apenas o boato, como se a ideia fosse simples. Lamento, mas isto não é aceitável. A vida dos pais não é argila à disposição do experimentalismo do Sr. Ministro. A nossa vida não pode ser desfeita desta forma. Os pais, sobretudo aqueles com filhos ainda pequenos, não podem ser os grandes sacrificados desta crise. Até porque representam boa parte da população activa, e deveriam ser uma prioridade no relançamento da actividade económica. Mas é isso que está agora em cima da mesa, como se nada fosse. Uma geração de jovens adultos (30 e 40 anos) está neste momento com a vida em suspenso, sem direito à liberdade, sem direito à carreira, sem direito aos filhos, porque estar em prisão domiciliária não é o mesmo que gozar os filhos. Sei do que falo: sou pai em full time durante três ou quatro meses por ano. E gosto. Isto que agora se passa não é ser pai em liberdade, como escolha; é outra coisa muito diferente.