Cólera. Malária. Com ou sem desastres como o ciclone que atravessou a Beira moçambicana, nós associamos estas doenças aos países africanos. Só que esta é talvez uma visão demasiado cómoda e caricatural. No dia-a-dia africano sem CNN ou RTP por perto, morre-se cada vez menos de epidemias de malária ou de outras doenças infecciosas. Devido ao esforço dos estados e de ONGs ocidentais como a fundação de Bill Gates, a batalha contra os micróbios está a ser vencida pelo humanidade através de sucessivas campanhas de vacinação. Agora, mesmo no contexto da tragédia moçambicana, temos os meios para vacinar centenas de milhares de pessoas contra cólera. Seria isso possível há duas ou três décadas? Devido ao pessimismo que se apossou do ocidente, tendemos a esquecer dados como estes: as mortes por malária à escala global desceram 48% durante este século. As mortes de sarampo desceram 84%. As mortes por HIV desceram 52%.

Mas há um senão. Se estamos a ganhar a batalha contra os micróbios, estamos a perder a batalha contra o açúcar. Se estamos a ganhar a guerra contra as doenças infecciosas que a natureza atira sobre nós (malária, cólera, sarampo), estamos perder a batalha contra as doenças (ex. diabetes) que a humanidade atira sobre si mesma. É por isso que é preciso ver Moçambique e os outros países subdesenvolvidos fora da narrativa caricatural. Como dizia há dias Fareed Zakaria, as doenças não infecciosas como diabetes serão responsáveis por 70% das mortes nos países subdesenvolvidos em 2020; em 1990, estas doenças representavam apenas 47% das mortes. À partida, esta evolução até podia parecer normal ou positiva: se evitamos as mortes rápidas e precoces, não quer isso dizer que as pessoas conhecerão mortes lentas e tardias às mãos de doenças não contagiosas? Não é bem assim. Em 2019, a esperança média de vida de um rapaz de 15 anos nos países em desenvolvimento é basicamente a mesma de 1990. Se antes morria de cólera e malária, este rapaz de 15 anos morre agora de diabetes. Se antes morria de fome, agora morre devido à péssima alimentação. E, neste aspecto, nós, ocidentais, temos imensas responsabilidades.

Se é verdade que o Ocidente é talvez a causa da diminuição das mortes por malária e cólera devido às campanhas de vacinação patrocinadas por Bill Gates, entre outros, também é verdade que o Ocidente exportou para o terceiro-mundo os piores hábitos alimentares. As vendas de comida e bebida ultra-processada entre 2000 e 2013 subiu apenas 2,3% na América no Norte, mas subiu 48% na América Latina e 71% em África e Médio Oriente. Ou seja, os povos africanos estão a largar as suas dietas clássicas e saudáveis e estão a ingerir quantidades mortais de comida ultra-processada, provavelmente porque ir a uma hamburgueria ocidental representa nestes países um sinal de ascensão social, modernidade, etc. Isto é mais dramático do que qualquer tragédia natural, porque são mortes humanas provocadas por um comportamento humano, e porque são mortes silenciosas, não têm um pico noticioso.

Portanto, há que repensar a caridade que todos os anos lançamos de boa vontade sobre África. Se calhar, a caridade hoje em dia passa mais por atacarmos multinacionais ocidentais que estão a envenenar os corpos dos seres humanos mais pobres e impressionáveis pelos néon do marketing. Se calhar, a caridade passa por exigirmos uma mudança às ONG que financiamos: no quotidiano africano, combater doenças como os diabetes é talvez mais prioritário do que as velhas campanhas contra a malária. Fazer políticas públicas para combater os diabetes e a má-alimentação é, sem dúvida, menos quixotesco do que entrar numa aventura contra a malária, mas é uma necessidade. A caridade não tem que ser uma aventura romântica a reluzir no CV.