Há quem diga que a posição moral da igreja sobre questões sexuais e matrimoniais não muda. Há quem diga que as posições da igreja não mudam sobre nada, ponto.

Há um fundo de verdade nesta posição. A igreja é o alicerce do mundo, a pedra de Pedro, o penedo que não responde às diferentes modas do momento. Um católico até pode perder a pátria e a família, mas nunca perderá a igreja e o evangelho. A igreja é a rocha que olha para cima para uma transcendência fixa e eterna, uma transcendência que é superior a qualquer moda ou opinião conjuntural. No entanto, há que recordar que Paulo sempre empurrou ou puxou a pedra. Se é verdade que Pedro é a pedra, também é verdade que Paulo move essa pedra desde aquele dia em que agarrou Pedro pelos colarinhos para lhe dizer que a verdade do Senhor era para todos, também era para os pagãos e não apenas para os judeus cristianizados. Sim, a pedra move-se. Devagar, mas move-se. O seu movimento não é humano, assemelha-se à deslocação das placas tectónicas. É lenta, mas existe. É lenta, mas poderosa. O caso dos “recasados irregulares” que caminham para a regularidade e que já foram “adúlteros” é um exemplo clássico desta pedra rolante.

A famosa Amoris Laetitia de Francisco não é uma revolução, não é um recomeço a partir do zero. Pelo contrário, é a consumação trinta e cinco anos depois da reforma iniciada por João Paulo II. O que não deixa de ser curioso: em 2018, o (alegado) sector tradicionalista que critica Francisco agarra-se a João Paulo II como uma lapa à rocha. Sucede que foi João Paulo II quem abriu a porta a Francisco. Antes de João Paulo II, o meio católico ainda olhava para o divórcio como um “pecado mortal” e ainda via no recasado um “adúltero”. Recordo, só a título de exemplo, as humilhações sofridas por Snu e Sá Carneiro. Precisamente nessa época, início dos anos 80, João Paulo II rompeu com a esta tradição que impunha a ostracização dos divorciados, sobretudo dos divorciados recasados civilmente.

O papa polaco retirou os pestíferos “adúlteros” do exílio babilónico, abriu-lhes as portas da igreja, expurgou as expressões “pecado mortal” ou “pecado grave” deste contexto matrimonial, impondo a expressão “situação irregular” que agora usamos. Como escreveu Miguel Almeida sj. no Observador, isto representou um salto à Copérnico, à Galileu. E pur si muove!

O epicentro do sismo está então na Familis Consortio (1981). A Amoris Laetitia (2016) é apenas o tsunami que chega à nossa costa. Francisco completa João Paulo II, limando as contradições do Papa polaco. Ao resgatar os divorciados e recasados do exílio, João Paulo II deixou a igreja numa contradição: então eles voltam, mas não podem comungar? Então eles voltam, mas não podem entrar no confessionário? Havia uma evidente tensão entre o mandamento central (misericórdia) e o acesso aos sacramentos. É aqui que entra a solução de equilíbrio proposta por Francisco: mediante um processo de discernimento sempre acompanhado por um padre, o recasado pode voltar aos sacramentos da comunhão e da reconciliação. É isto que se espera do penedo que Paulo carrega às costas.