Pensar Pedrógão implica passar pelo terramoto. Aliás, pensar qualquer catástrofe implica passar por 1755. É que o terramoto de Lisboa também foi um terramoto no pensamento europeu.

A fractura na geografia e na população de Lisboa provocou uma fissura revolucionária na filosofia, sobretudo na questão do mal. Depois de 1755, Deus deixou de contar para a explicação do mal provocado por fenómenos naturais. Sim, Deus fez as leis físicas que tutelam o espaço e o tempo, mas Deus não quer um terramoto ou um incêndio a matar pessoas; Deus não moraliza a natureza; as catástrofes naturais não são castigos de Deus, e também não são divertimentos macabros de Lúcifer.

Este mal natural é amoral, não tem agência, não nasce de uma intenção, simplesmente acontece. É assim diferente do mal moral, que nasce de uma vontade humana consciente – um tufão que mata mil é amoral, um assassino que mata um é imoral. É por isso que nós conseguimos fazer uma distinção entre um massacre levado a cabo por homens armados e uma tragédia provocada pela natureza. Os franceses massacraram a população de Beja e Évora nas invasões, foi um acto humano, consciente, imoral, há um culpado. Meio século antes das invasões, o terramoto e o tsunami de Lisboa mataram milhares num acto natural e amoral.

Mas, mesmo com esta explicação, nós podemos reagir ao desespero com a pergunta inevitável: onde estás tu, Deus? Porque é que permites este mal? A resposta está num filósofo parodiado por Voltaire em “Cândido”, um dos livros pós-1755. Como recordou Leszek Kolakowski, a cultura ocidental, dominada pelo materialismo e ateísmo, passou a olhar para Leibniz através da caricatura de Voltaire (Pangloss), o que é desonesto. Ao contrário do que Voltaire dá a entender, Leibniz não é um optimista inconsciente. Mais: Leibniz não era um mero místico – o que não é um pormenor.

Muitos místicos e pensadores ditos cristãos acreditavam (e ainda acreditam) que Deus está sempre a actuar no espaço e no tempo, como se a natureza e o cosmos fossem eternos pátios onde Deus está sempre a brincar aos legos, tirando e pondo peças a cada momento. Confunde-se “omnipotência” com “capricho”. Não, Deus não pode alterar o passado, nem muda o cosmos a cada momento, porque isso significaria que o momento da Criação não tinha sido perfeito. Deus criou as leis do espaço e do tempo no momento perfeito da Criação; desde esse momento fundador em que foram accionadas pelo Criador, estas leis têm mantido o espaço e o tempo em movimento e dentro de um padrão de repetição e previsibilidade - o eterno retorno. É este padrão cíclico que permite à ciência descobrir parcelas dessas leis. Não há acaso, não há aleatório no mundo natural.

Ora, Deus não pode suspender essas leis só porque num dado momento elas podem provocar incêndios, terramotos, tufões – até porque esses acontecimentos sísmicos fazem parte da equação da natureza. Esse “mal natural” só é visto como “mal” porque nós habitamos espaços onde essas regularidades naturais acabam por rebentar. Basta pensar nas palavras que usamos. Se um vulcão expelir lava e matar gente com aquele mar vermelho, dizemos que é uma “catástrofe” e questionamos Deus. Se um vulcão expelir lava numa ilha desabita, dizemos que é um “espectáculo da natureza” e glorificamos a beleza da Criação.

É por isso que o argumento céptico (de Epicuro a Hume) não faz sentido. Hume argumentava desta forma: Ele, Deus, deseja evitar o mal, mas não é capaz? Então é impotente e não omnipotente. Ele é capaz, mas não quer? Então é masoquista e não misericordioso. A questão é que Deus não é omnipotente nesse sentido ditatorial e caprichoso; Ele não é um homem, muito menos um garoto, não muda de opinião a cada segundo. Se Ele travasse a tragédia natural, suspenderia o movimento natural do mundo, suspenderia as leis da física, da química, da matemática – leis que dão o movimento e a própria vida ao mundo. Deus suspender-se-ia a si mesmo se travasse o terramoto, a tempestade, o incêndio. Seria uma contradição em termos, seria o vazio, o vácuo, o nada. O que é preferível? Um mundo onde de vez em quando há tragédias naturais ou o vazio?

Além do mais, Ele nunca prometeu um mundo sem tragédias naturais e humanas. Ele nunca nos prometeu um mundo sem cheias, incêndios, terramotos, gulags, invasões, guerras. Aliás, se tivesse feito esta promessa, Ele não seria o Deus que preza a nossa liberdade num mundo em movimento, seria um tirano celestial anulando a nossa liberdade num mundo estático, sem movimento, sem tempo. Viveríamos não numa “fita de tempo”, mas num quadro estático. Ou seja, não viveríamos, seríamos tão inertes, naturais e amorais como cinza ou areia.