No meu processo de conversão, o romance “A Estrada” foi fundamental. Costumo dizer a brincar que este livro de Cormac McCarthy é o meu quinto evangelho. Na altura (2009), já não era ateu e estava naquele centrão teológico chamado agnosticismo, que é uma forma chique de dizer ainda-não-tinha-coragem-para-dar-o-passo-em-direcção-de-Deus.

O livro parte desta pergunta: o que fazer no coração das trevas? Num mundo apocalíptico sem qualquer esperança, num mundo que parece o local da batalha onde Lúcifer venceu Gabriel, como é que mantemos a nossa decência? Como é que mantemos a nossa moral num mundo que nem sequer é imoral mas sim amoral, tal é a indiferença perante o mal? A própria ideia de “moral” é concebível num mundo onde até o canibalismo se torna normal? Quase dez anos depois, o filme “Silêncio” de Martin Scorsese remete-me de novo para essa questão. Só que agora, já na condição de convertido, coloco a palavra “fé” onde antes tinha a palavra “moral”. Como é que se serve Deus e Jesus a partir do coração das trevas? A própria ideia de “fé” faz ali sentido?

A força do filme reside no dilema colocado aos três jesuítas portugueses que protagonizam a história: Ferreira (Neeson), Garupe (Driver) e Rodrigues (Garfield), a personagem principal. As autoridades japoneses do século XVII querem exterminar a memória do cristianismo no Japão. Torturam e matam cristãos. Para um cristão, o Japão é o apocalipse de “A Estrada”. No menu deste apocalipse nipónico, encontra-se uma tortura mental imposta a todos os padres portugueses: têm de renunciar publicamente à fé (apostasia).

No início, Rodrigues segue a teoria e considera inaceitável a apostasia. Porém, depois de muitas peripécias e do continuado silêncio de Deus, ele descobre que fazer a tal apostasia (meramente verbal, exterior, burocrática) é o caminho mais cristão de todos. Porquê? Os inquisidores japoneses colocam Rodrigues perante um dilema: se ele não renunciar a Deus e a Jesus, os samurais assassinarão os cristãos japoneses que estão a ser torturados ali à sua frente. Deve ele manter a honra e a coerência absoluta da fé ou deve conceder no sentido de salvar vidas? No auge do dilema, o filme dá-nos finalmente a voz de Deus, que diz a Rodrigues para apostatar. É Deus que dá a ordem: pisa a imagem de Jesus.

Contradição? Incoerência? Não me parece. A força do cristianismo está na recusa do paganismo que não concebe a transcendência, mas também está na recusa de um Deus platónico que não vem até nós. E o pior que pode acontecer a um cristão, parece-me, é ficar apaixonado pelo cristianismo enquanto ideia abstracta, geométrica, sem imperfeições.

Como dizia Chesterton, não devemos amar o cristianismo, mas sim Cristo; não devemos amar uma humanidade vaga e abstrata, mas sim pessoas concretas. O cristianismo, antes de ser teoria, é biografia. Rodrigues percebe ali que não serve de nada manter uma fé teológica de 20 valores se depois esquecemos as pessoas de carne e osso que nos rodeiam.

A fé cristã deve ser uma paixão, e não o sistema filosófico da nossa vaidade ou coerência intelectual. Não, o nosso Deus não está num símbolo material que se pisa, nem sequer está no discurso exterior, está nesta paixão interior e inviolável, uma paixão que nenhum poder terreno pode destruir. Por outras palavras, o silêncio central do filme não é o silêncio de Deus, mas sim o silêncio de Rodrigues e Ferreira que assumem aquela desonra pessoal (serem considerados apóstatas em Lisboa) para assim salvarem pessoas concretas, para serem personificações concretas das lições do Evangelho.