Poucos lhe reconheciam um trato fácil, mas, quando a sua personalidade ganhou fóruns de reconhecimento nacional na denúncia da fome do distrito de Setúbal, no início dos anos 80, em pleno acordo com o FMI, quando crescia a fome no distrito e abundavam as chamadas marchas das bandeiras negras, já D. Manuel Martins levava quase uma década como pastor de uma das áreas mais pobres e descristianizadas do país e o seu reconhecimento como uma das vozes mais importantes e assertivas na Igreja nacional suscitavam a estima e admiração de uma pluralidade de sectores de crentes e não crentes.

Setúbal vivia então uma das maiores taxas de desemprego, onde uma inflação de 30% se conjugava com milhares de trabalhadores com salários em atraso, incapazes de fazer face à subida do custo de vida resultantes das políticas impostas pelo mais duro programa do FMI.

D. Manuel Martins, eleito primeiro bispo de Setúbal em finais de 1975, teve de vencer a assumida hostilidade à Igreja desde o primeiro dia de ordenação. No rescaldo do PREC, as igrejas eram ali ainda atacadas à pedrada e denunciadas como o último sustentáculo da ordem anterior.

Nunca lhe foi por isso fácil ser bispo de um rebanho muitas vezes hostil onde a miséria desaparecia de forma lenta demais e a cada choque económico (o primeiro acordo com o FMI logo em 1977 deixou feridas que, sete anos depois, reabriam com os efeitos do novo empréstimo gerando um enorme clamor social), mas nessa altura por detrás de cada bandeira negra estava o clamor do “bispo dos Pobres” e às suas “ovelhas” já lhes tinha conquistado a confiança.

Em Lisboa, pelo contrário, levou o seu tempo. A corte de economistas e governantes do chamado Bloco Central tentavam torturar os números para encontrar forma de negar a existência da fome e encontrar sinais de retoma generalizada.

Soares foi dos últimos a reconhecer que a desvalorização do escudo e a subida a pique dos bens essenciais (desde o pão ao açúcar ao leite e aos combustíveis) somado a taxas de desemprego de mais de 10% e ao fenómeno único de centenas de milhares de trabalhadores com salários em atraso, fazia de Setúbal uma região mais castigada e frágil. Chegou a desmentir o bispo, acusando-o de “exagero”, colando-se à alcunha que crescia entre alguns meios eclesiais que confundiam a frontalidade do jovem bispo a uma excessiva proximidade aos sindicatos e autarcas dominados pelo PCP. Colava-se-lhe o rótulo de “Bispo Vermelho” numa tentativa de o descredibilizar.

Muitos anos mais tarde, quando o visitei, já como bispo emérito, no Porto, para lhe pedir que continuasse uma colaboração de muitos anos com crónicas semanais exclusivas para o nosso site, e que ele anunciara que iria interromper, falamos longamente sobre a sua vida e lembro-me que me disse que pouco se importara com a “alcunha”.

Antecipando a frase que mais tarde o Papa Francisco haveria de pronunciar também aos jornalistas, desabafou: “nunca me importei que me chamassem comunista”. Se isso significasse apenas que o viam seguir o Evangelho e pô-lo em prática.

D. Manuel não recomeçou a escrever para a Renascença excepto muito esporadicamente, mas esse último encontro de horas, sem microfones entre nós, foi para mim uma lição de vida.

Os que começavam como eu as respetivas carreiras de jornalistas em 82/83 e cobriam a luta dos “bandeiras negras”, desde há muitos anos que de tempos a tempos o entrevistávamos. Sempre directo e frontal, quase sempre polémico na análise dos políticos e das políticas que o deixavam frequentemente insatisfeito pela falta de justiça ou de clareza sobre o que era ou deveria ser prioritário. A relação com Soares inicialmente tensa e de quase confronto haveria de transformar-se em admiração mútua, mas a critica às políticas de “austeridade” foi uma sua constante e a vinda da troika e as políticas subsequentes não lhe mereceram menores reparos.

Nas primeiras vezes que falei com D. Manuel as suas frases confirmavam o que se via no terreno e Lisboa negava. A fome no distrito era palpável. Os salários chegavam a cair num só ano 10% em termos reais, mas não ter emprego, por esses anos, era uma chaga maior e em Setúbal a taxa era bem superior aos 10% nacionais e, pior ainda, Portugal vivia um fenómeno único e de gravidade extrema com centenas de milhares de trabalhadores a viver com salários em atraso (era também o meu caso no DN. Por essa altura, as cativações atingiam todas as empresas públicas, mesmo as da comunicação social).

Os economistas e os governantes tentavam contrariar com algum optimismo e “torturavam os números" para encontrar médias mais animadoras que anunciavam o previsível fim da recessão, mas Setúbal recebia os ganhos do choque recessivo com enorme atraso.

D. Manuel nunca abandonou a escola de D. António Ferreira Gomes de quem no regresso do exílio chegou a ser vigário geral. Dizer a verdade, frontal e livremente nunca se deixando enredar pelas falinhas mansas dos homens da “corte”. Como homem e pastor soube sempre como dizia o poeta ser “homem de um só parecer, de um só rosto e de uma fé, de antes quebrar que torcer”.

Não gostava de hipocrisias nem falinhas mansas e atalhava frontal quem se satisfazia com uma doutrina social teórica pronta a todos os compromissos e que não conduzisse a uma prática radical, empenhada, quase austera. Era também isso que exigia aos meios de comunicação social: coragem na denúncia das injustiças viessem elas de onde viessem.

Entre as suas lutas múltiplas lutas ao lado da Cáritas e dos leigos mais empenhados na pastoral social soube cultivar amizades profundas entre pessoas das mais diversas condições e entre os muitos que casou ou a quem baptizou os filhos (colhi ainda hoje o testemunho de alguns) continuava a falar regularmente acompanhando as vidas mesmo que a muitos quilómetros de distância como amigo próximo e acolhedor.

Na secção portuguesa da Pax Christi Internacional e na Fundação SPES estendeu-se à causa de Timor acabando agraciado pelo Governo timorense pelo esforço de libertação do povo. Essa foi apenas mais uma luta nas múltiplas travadas em defesa dos direitos humanos. Entre eles ele incluía, antecipando muito a leitura dos sinais dos tempos, o direito essencial a “não ser pobre!”.

Obrigada, e até Deus, sr. D. Manuel Martins