Trump teve uma intervenção inédita nas eleições presidenciais: na noite de terça-feira, dia da votação, exigiu que parasse a contagem dos votos e declarou vitória. Desde há longas semanas que Trump lançava o descrédito sobre as votações pelo correio e sobre a própria democracia, acusando de fraudes no processo eleitoral, sem apresentar qualquer prova. Preparou assim o terreno para exigir recontagens e apelar aos tribunais, incluindo o Supremo, visando desqualificar as votações que lhe sejam desfavoráveis.

As eleições presidenciais desta semana nos EUA foram as mais concorridas desde há mais de um século. J. Biden obteve mais votos dos cidadãos do que qualquer candidato presidencial anterior e D. Trump teve mais 5 milhões de votos do que em 2016.

Como foi possível que quatro anos de Trump não tenham afastado muitos eleitores? Ele procurou sempre dividir os americanos, por vezes com grande agressividade. Foram evidentes e imensas as suas mentiras diárias. Trump não defende qualquer ideologia nem um claro programa – defende apenas aquilo que lhe pode trazer votos.

Aproximou-se dos que advogam a continuação da supremacia branca (incluindo os que recorrem à força ilegal), porque sabe que existem numerosos americanos brancos que receiam perder estatuto numa sociedade cada vez mais multirracial. Daí a sua cobertura a atitudes de racismo e a sua hostilidade aos imigrantes. E passou a mostrar-se contrário ao aborto (que antes defendera) para captar votos dos cristãos evangélicos e católicos.

Alegou-se que Trump representava os marginalizados pelo progresso económico e tecnológico, mas ele baixou os impostos sobretudo dos ricos, aumentando as já enormes desigualdades de riqueza na sociedade dos EUA. Os direitos humanos não lhe interessam – para ele, são preocupações de “loosers” (vencidos).

Trump foi fiel a algumas ideias fixas, em geral erradas, como julgar que uma economia bem sucedida é aquela que exporta mais do que importa. Ou não acreditar nas alterações climáticas, tudo fazendo para eliminar ou enfraquecer restrições ambientais que deviam conter o CO2 e abandonando o acordo climático de Paris. E não manifestou qualquer empenho em promover a democracia no mundo; pelo contrário, preferiu relacionar-se com autocratas como Putin.

A inépcia de Trump como governante tornou-se gritante com a repetida desvalorização da pandemia, que matou centenas de milhares de americanos. Sem o coronavírus provavelmente Trump teria sido reeleito sem dificuldade. Mas ter obtido uma significativa votação, apesar da catastrófica gestão da pandemia, é um fortíssimo sinal de que a democracia liberal está a perder terreno nos EUA.

Como se chegou até aqui? Com a vitória americana na guerra fria, começaram a surgir vozes defendendo que os EUA, a única superpotência, deveriam prosseguir os seus interesses sem se preocuparem com as alianças em que estavam inseridos e foram por eles promovidas depois da II guerra mundial. Sendo a nação mais poderosa do mundo, sugeriam os chamados neoconservadores, os EUA tinham o direito da força. Mas não a força do direito.

Na sequência dos terríveis atentados de setembro de 2001, os serviços secretos entraram ilegalmente na privacidade de milhões de americanos. Sob o impulso Dick Cheney, vice-presidente de George W. Bush, a tortura foi aceite na prática como meio de luta contra o terrorismo. Deu-se a fatal invasão americana do Iraque, justificada com mentiras - afinal, não havia armas de destruição maciça na posse de Saddam Hussein.

Entretanto, uma facção da direita radical – o “Tea Party” - tomou o poder no partido republicano. Hoje esse partido nada tem a ver com o moderado partido de Lincoln, submetendo-se abjetamente a Trump. Houve agora alguns políticos republicanos (entre eles, o ex-presidente Bush filho) que, por motivos de consciência, não votaram em Trump, pondo em risco a sua carreira política. Mas são exceções.

Por seu lado, no partido democrático cresceu a importância da esquerda radical – veja-se o socialista Bernie Sanders. Acabou por ser uma sorte para esse partido ter nomeado um moderado centrista e uma pessoa que, sem ser brilhante, é decente, como candidato presidencial – Joe Biden. Caso contrário, os democráticos teriam perdido claramente esta eleição presidencial.