O velho aforismo de que uma imagem vale mais do que mil palavras tem agora em Donald Trump o exemplo mais notório. Desde que viu as terríveis imagens das crianças sírias vitimadas pelo ataque com gás sarin perpetrado pelo regime de Assad em Idlib, Trump parece ter percebido finalmente como funciona o mundo e ter aprendido a distinguir claramente entre o essencial e o acessório.

Na linha das surpreendentes declarações que tem feito desde a semana passada sobre política externa, o presidente americano reconheceu esta quarta-feira que afinal a NATO já não é obsoleta.

Foi numa conferência de imprensa com o secretário-geral da Aliança Atlântica, Jens Stoltenberg, em Washington, quando ambos falavam dos progressos feitos pela NATO na luta contra o terrorismo e na partilha de custos. Dois temas em que Trump criticou a organização durante a campanha eleitoral e que lhe serviram de pretexto para a apelidar de “obsoleta”.

Desta vez, com Stoltenberg a seu lado a garantir-lhe que há cada vez mais empenho da NATO na luta contra o terrorismo e que há cada vez mais países membros disponíveis para pagar a quota parte dos custos que lhes cabe (o chamado burden-sharing) na organização, Trump entendeu ser o momento de admitir que afinal a aliança “já não é obsoleta”.

O papel da NATO na luta anti-terrorista, nomeadamente no Afeganistão e nas operações anti-ISIS (Estado Islâmico), talvez tenha tido um peso importante na mudança de atitude do presidente, mas a questão da contribuição financeira foi, na campanha eleitoral, o ponto em que Trump mais insistiu.

E neste aspecto, Stoltenberg trouxe-lhe boas notícias: há já oito países membros que atingiram os 2% do PIB no seu orçamento para a defesa e outros estão a caminho de o atingir. Serão mais 3,8% no total do orçamento da aliança, o que representa mais 10 mil milhões de dólares. Sempre muito sensível a questões de dinheiro, Trump mostrou então a sua satisfação com a NATO.

No início da conferência de imprensa, o presidente tinha elogiado a aliança como um baluarte na luta contra o comunismo e na manutenção da paz após a II Guerra Mundial, a primeira responsável pela segurança comum e pela partilha de valores entre os aliados. Valores que contrastou com a “horrenda guerra civil” síria, chamando a Assad “carniceiro” e “animal”.

Mas a Síria, e por tabela a Rússia, foram os assuntos que dominaram o dia, sobretudo graças à visita a Moscovo do secretário de Estado Rex Tillerson. Interrogado sobre se achava possível que a Rússia não soubesse antecipadamente do ataque químico a Idlib, Trump respondeu que achava “possível”, mas não achava “provável”.

“Gostaria de pensar que a Rússia não sabia, mas eles estão lá”, desabafou, lembrando que o Pentágono está a investigar o assunto.

Tillerson em Moscovo

Em Moscovo, tinha entretanto sido anunciada uma investigação independente e imparcial ao ataque químico de 4 de Abril. Na conferência de imprensa que deram após um encontro de duas horas com Vladimir Putin, os responsáveis pelas diplomacias americana e russa tentaram baixar tom das discordâncias, mas não as esconderam.

Aguardada com grande expectativa, a ida de Tillerson a Moscovo acabou por estar envolvida numa certa dose de tensão. O primeiro encontro foi com o seu homólogo russo, Serguei Lavrov, mas até à última hora ignorava-se se Putin receberia o secretário de Estado americano. O encontro aconteceu, de facto, e durou cerca de duas horas.

O Kremlin é pródigo em criar este tipo de tensões com o intuito de valorizar o acesso ao seu presidente e cultivar uma aura de mistério que subsiste desde tempos imemoriais, segundo os especialistas.

Rex Tillerson começou por admitir que as relações entre os dois países estão num ponto muito baixo, com um nível de confiança demasiado baixo para as duas maiores potências nucleares do mundo, o que na sua opinião não pode continuar. Uma asserção com que os presidentes dos dois países parecem concordar.

Trump disse mais tarde que as relações Washington-Moscovo estavam ao nível mais baixo de sempre e Putin já tinha dito algo parecido: as relações estão hoje piores do que no tempo de Obama.

Com todos aparentemente sintonizados no objectivo de evitar que elas se degradem mais, Tillerson classificou as conversações com Putin como “produtivas”. Mas o único sinal dessa “produtividade” foi o anúncio por Putin de que o mecanismo de comunicação entre forças americanas e russas estacionadas na Síria está reposto, evitando qualquer mal-entendido militar nas movimentações de ambas as tropas.

Recorde-se que Moscovo tinha suspendido este esquema de cooperação na sequência do bombardeamento à base aérea síria pelos mísseis americanos. Que, aliás, os americanos usaram para avisar os russos de que iam bombardear a base.

Investigação imparcial

O outro ponto concreto resultante do encontro foi o anúncio pelo ministro russo, Serguei Lavrov, de que será pedida à Organização para a Prevenção das Armas Químicas, com sede em Haia, que faça uma investigação “honesta” e “imparcial” ao “incidente” de Idlib, como lhe chamou.

Interrogado pouco depois sobre se a Rússia retiraria o apoio a Assad caso os resultados da investigação concluíssem pela sua responsabilidade no uso das armas químicas, Lavrov foi evasivo, dizendo que não especulava sobre o assunto.

Mas foi lembrando os vários erros cometidos pelo Ocidente nas últimas décadas nas suas intervenções ao abrigo do direito de protecção de populações indefesas. Lembrou o bombardeamento da embaixada chinesa em Belgrado, a inexistência de armas de destruição maciça no Iraque, o caos em que mergulhou a Líbia após o derrube de Kadhafi, tudo num esforço para desacreditar as decisões ocidentais no derrube de ditadores.

Algo a que Moscovo sempre se opôs e continua a opor-se. Pouco depois de Lavrov fazer estas declarações, a Rússia vetava mais uma resolução no Conselho de Segurança da ONU que requeria a cooperação de Assad nas investigações a Idlib. Foi a oitava vez que Moscovo usou o seu veto para proteger Assad.

Mas, enquanto Lavrov evitava condenar o regime sírio, Tillerson não se inibia de dizer que havia “provas claras de que o ataque em Idlib tinha sido planeado, dirigido e executado pelas forças do regime sírio". Já quando lhe perguntaram se a Rússia tinha sido cúmplice do ataque, Tillerson disse que não tinha provas dessa cumplicidade. A questão está em fase de investigação em Washington.

Foi a isto que ambos chamaram conversações “francas”, com os Estados Unidos a insistirem que a Rússia está em boa posição para convencer Assad a abandonar o poder de forma “ordeira” e Lavrov a reconhecer mais tarde que os ditadores raramente saem sem violência.

Em termos políticos, porém, as posições de ambos em nada se alteraram. Os EUA mantêm a sua exigência de exclusão de Assad no futuro da Síria — Tillerson reafirmou-o em Moscovo —, enquanto a Rússia mantém o seu apoio ao ditador. Isto para além da visão oposta quanto ao uso de armas químicas, claro. “Estabilizar a Síria” é a única expressão em que ambos os campos parecem rever-se.

Quanto ao combate ao terrorismo, em concreto ao ISIS (Estado Islâmico), foram proclamadas convergências de objectivos e quanto à Coreia do Norte ambos reafirmaram a necessidade de “desnuclearizar” a península coreana.

Mas se o bom senso recomendava que não se esperasse deste encontro no Kremlin uma solução para o problema sírio, pode pelo menos registar-se uma diminuição de tensão entre Washington e Moscovo. Foi criado um grupo de trabalho para melhorar as relações bilaterais, que Serguei Lavrov considerou terem “um grande potencial de melhoria”.

Isto poucas horas depois de Trump ter dito em Washington que Putin estava a apoiar uma “má pessoa” e que “se a Rússia não tivesse apoiado este animal não teríamos hoje este problema”.