Não foi propriamente uma surpresa o anúncio esta quarta-feira da candidatura da búlgara Kristalina Georgieva ao cargo de secretário-geral da ONU. Desde Maio último que se ouve falar nesta hipótese e, como dizia há dias uma fonte diplomática portuguesa à Renascença, houve vários momentos em que alguém garantia que ela ia avançar na semana seguinte sem falta.

Avançou agora que está cumprida a primeira fase da escolha, após entrevistas públicas e debates entre todos os candidatos perante a Assembleia Geral, um processo que começou em Abril. E sobretudo após cinco escrutínios em que os doze candidatos iniciais foram a votos submetendo-se à decisão soberana do Conselho de Segurança.

Esta é portanto uma candidatura tardia. Mas é também uma candidatura opaca. Resulta de jogos de bastidores, que é exactamente o que o processo aberto na ONU este ano tenta evitar. E nem sequer jogos de bastidores entre países que negociaram algo nas suas frentes diplomáticas. Ao que parece, trata-se antes de mais de uma iniciativa surgida no seio e por vontade do Partido Popular Europeu (PPE), a família conservadora europeia, onde é patente o empenho da Alemanha.

Na última cimeira do G20, na China, a chanceler Merkel tentou convencer o presidente russo a aderir à candidatura de Georgieva, mas a reacção de Putin foi de profundo desagrado, ao ponto de a tornar pública. Putin terá argumentado que a Bulgária já tinha uma candidata ao cargo e que não fazia sentido lançar alguém sem o apoio do seu próprio país. Para os russos, os dados estavam lançados – a directora-geral da UNESCO, Irina Bokova, é a sua candidata.

Talvez por isso, Bokova fez saber publicamente, já depois do anúncio do lançamento da sua compatriota, que se mantinha na corrida por sua conta e risco. Quer o governo búlgaro goste ou não, Sófia tem neste momento duas candidatas a secretário-geral, um sinal das profundas divisões e do desnorte político-diplomático no país. Uma circunstância que é, só por si, um factor de descredibilização das candidaturas.

As fontes diplomáticas contactadas pela Renascença são unânimes em sublinhar que uma das forças da candidatura de Guterres é o consenso absoluto que gerou em Portugal.

Neste contexto, a candidatura da ex-comissária europeia, Kristalina Georgieva, surge como descredibilizada e porventura ferida de morte. Primeiro, porque parece fundamentar-se em fracturas ideológicas europeias que são irrelevantes para o cargo de secretário-geral das Nações Unidas. Segundo, porque não se compreende muito bem o empenho da Alemanha numa candidatura tardia, lançada de forma atabalhoada e à revelia das regras de transparência postas em prática este ano. Terceiro, porque face à hostilidade mostrada por Moscovo desde o início, tudo leva a crer que o veto russo a Georgieva será uma certeza.

Mas no Conselho de Segurança o desagrado com esta candidatura poderá vir também da França, que tem demonstrado a maior simpatia para com a candidatura de Guterres. Se o que moveu a candidatura de Georgieva foi a família conservadora europeia, o PPE, é bem provável que a França, governada por socialistas, não lhe dê o seu aval.

E talvez até a China, sempre avessa a ineditismos e a espectáculos de divisão nacional como o que a Bulgária acaba de dar, se mostre pouco receptiva à novel candidata.

É por isso duvidoso que Georgieva tenha sucesso. Sobretudo porque o veto russo parece garantido. Mesmo que porventura os Estados Unidos simpatizem com a candidatura de Georgieva, por ser mulher e ser da Europa de Leste, não se vislumbra como poderão convencer os seus pares do Conselho de Segurança. Sobretudo porque as relações com a Rússia passam por um período de grande tensão por causa da Síria.

Em suma, tudo ponderado, talvez esta candidatura acabe por beneficiar António Guterres como o candidato do consenso, que se submeteu a todas as provas e em todas deu boa conta de si.

O nome próprio de Georgieva é Kristalina. Eis uma última contradição, esta semântica, da sua candidatura. A menos cristalina que surgiu até hoje.