Como diz uma amiga minha, de inserção eclesial variável mas relativamente informada, “era disto que estávamos à espera”. Desde a sua bancada, na berma da prática religiosa, a minha amiga avalia a prestação do Papa Francisco com enorme veemência e o desassombro induzido pelo “escândalo da normalidade”, como lhe chamou Elisabetta Piqué.

De facto, o Papa, das muitas coisas inauditas e inesperadas que consegue criar, também granjeou um efeito invulgar para a cultura dominante ao fazer com que as pessoas se detenham mais naquilo que faz do que naquilo que aparenta. De facto, contrariamente a todos os demais retratados nas capas da imprensa mundial, as pessoas, aos magotes e num entusiasmo rubro, quase histérico, abeiram-se do Papa Francisco sobretudo pelo prazer de partilhar um momento de proximidade com alguém que, mais do que bem na vida, parece estar de bem com a vida. Ele é o chefe da Igreja Católica, de muitos milhões de católicos mas, e usando uma expressão corrente, é também o “vizinho do lado” que nos alegra convidar para tomar um café. Há, pois, no Papa, uma inerente lição de liderança que é, à vez, involuntária – porque não busca o poder nem o reconhecimento – e completamente intencional – porque procura servir, com resiliência e consistência, num radicalismo de caridade e missão (como apontou a todas as pessoas de bem, na recente viagem ao Egipto) que visa eficazmente quebrar as barreiras dos muito humanos egoísmo e medo da diferença.

Há, pois, no Papa Francisco, uma vida de seguimento de Cristo que recria a sua centralidade na luta contra a pobreza e o exercício, sempre considerado tão perturbado, do desprendimento face aos favores materiais do mundo, numa liberdade genuína que revela apreço pela coisa humana, inteligência e emoção em partes iguais. O Papa pode merecer a atenção pop da cultura mediática mas a sua intervenção reconstrutora – das estruturadas, das ideias, das pessoas – vai tão longe e é tão sábia que, mais do que levantar protestos na Cúria ou entre “sectores” isto ou aquilo, conseguiu reconciliar os católicos com o Papa Bento XVI (em grande medida sempre fragilizado perante a opinião pública pelas anteriores funções na Defesa da Fé, pela complexidade audaciosa do seu discurso teológico e, finalmente, pelos fãs defraudados com a sua resignação) e accionar definitivamente o motor do II Concílio do Vaticano. Encontramos, pois, no actual Papa, tão acessível quanto complexo, tão amável quanto desafiador, o fortalecimento e a revitalização daquela que pode ser a linha mais sólida, mais revolucionária e mais profundamente reveladora do que é o fundamental coração cristão. E tal acontece de uma forma perfeitamente inculturada – porque o Magistério, quase de repente, mostra que a Igreja conhece as pessoas e as pessoas compreendem claramente este novo discurso – e que, iniciando-se com o Papa João XXIII, se estrutura ao longo dos últimos cinquenta anos pela mente, mão e coração de um conjunto de homens e líderes tão diferentes quanto extraordinários.

E, por muito alto que soem as vozes críticas contra o impacto que a acção do Papa Francisco tem nas consciências mais devotas e disciplinadas, e mesmo que se continue a rever com uma minúcia desconfiada e doentia qualquer das suas intervenções e ofertas de Magistério, esta Revolução parece imparável pois está, como sonhado pelo Concílio, nas mãos de uma Igreja Povo de Deus, descentrada, entregue a cada crente, apostada na humanização do mundo e acolhedora de todas as condições, sempre passíveis de se aperfeiçoar, de se santificar. E, mais do que solicitar católicos de esquerda, como sugeria o Presidente da República, convida a uma revisão sobre o que é a esquerda e sobre o que é, hoje, a direita.

A espera já habitava Portugal em 1917 e, agora, a esperança revive-se no desejo de receber bem o Papa, talvez mostrar-lhe que, aqui, há um coração ligeiramente diferente, um modo próprio de se ser país e de se ser Igreja, uma boa notícia do acolhimento que se vive em Fátima, no segredo do íntimo de cada pessoa, mas ao qual é difícil ficar-se indiferente. E naquele sítio, onde as manifestações de fé são tão comoventes e o clima tão surpreendente, que progressista é a Igreja, finalmente, por chamar a atenção para as crianças, não apenas como cândidas e confiantes na sua ignorância e improdutividade, mas como as pessoas completas que já são. Em Portugal, há anos que a educação religiosa propõe aos mais pequenos que pensem sobre a sua dignidade e o seu valor. Não é preciso chegar “a grande” para se ser grande.