18 abr, 2017
Foi apenas um testemunho, daqueles que ouvimos já em modo ‘semi-desligado’ num noticiário em que cada vez mais se mistura o relevante com o acessório. Dizia um dos cerca de 4.500 migrantes resgatados no sábado no Mediterrâneo: “Ontem à noite éramos 120 – homens, mulheres e crianças – e hoje já só somos 22”.
Temos, numa frase simples, toda a brutalidade de um processo que acontece à nossa porta e que parece continuar a não incomodar de maneira suficiente os dirigentes europeus. A Itália terão chegado, nos primeiros três meses deste ano, mais de 24 mil pessoas, sendo que 10% delas são menores não acompanhados. E a Europa – que o mundo, apesar de tudo, ainda projecta como um espaço diverso, multicultural, livre e com um mínimo de oportunidade para todos – mostra-se cada vez mais incapaz de lidar, de forma eficaz e respeitadora, com este desafio.
Temos também, na enunciação serena e despojada da tragédia que fez aquele migrante, motivação adicional para reflectir sobre o uso deliberado que o Papa fez, este ano, da palavra ‘vergonha’ na celebração da Via Sacra. Disse o Papa Francisco: “Vergonha por todas as imagens de devastação, de destruição e de naufrágio, que se tornaram comuns na nossa vida”.
A Europa edificada no pós-guerra, com base em ideias genericamente identificadas com uma social-democracia de raiz Cristã, deu lugar, a partir de meados da década de 1980, a uma Europa centrada no culto do ganho individual, no desmantelamento do Estado Social, na desregulação e no privilégio às acções de instituições financeiras. Muito do que a Europa deixou de fazer nos últimos 30 anos teve a marca desta leitura ideológica extremista. Foi pela sua mão que a Europa afastou de si os mais pobres e desfavorecidos – dizendo-lhes que eram ‘falhados’ (e empurrando-os para outros extremismos) – foi pela sua mão que a Europa escolheu fazer burocracia em vez de fazer política (com a sacralização de procedimentos orçamentais) e foi pela sua mão que a Europa abdicou de ser uma entidade activa em termos de política externa (e o modo como lidou com a Turquia e, no fundo, empurrou aquele país para a situação de radicalismo em que agora vive é exemplar).
A crise no Mediterrâneo é, por tudo isto, uma espécie de oportunidade definidora para o Velho Continente, sendo que não há já muito mais espaço de manobra para hesitações. Vai ser preciso escolher entre o abandono da ‘financialização’ de um protejo político ou o seu desmembramento completo. Uma Europa pela qual vale a pena lutar não pode olhar com indiferença para uma catástrofe e não pode fazer da dignidade humana apenas um fator numa equação. Esse tempo acabou.