Entre brincar e "instagramar". Uso de telemóveis nas escolas deve ser proibido?

Duas escolas: uma em Castelo Branco, outra em Viseu. Acolhem alunos do 1.º ao 3.º ciclos. Uma é pública, outra é privada. Numa é permitido o uso de telemóveis, mas na outra não - desde 2018. Proibir o uso “é como se quiséssemos parar os relógios para parar o tempo”, alerta o psicólogo clínico João Lázaro. Já o presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares defende que cada escola deve tomar medidas “de acordo com a comunidade”. Parecer do Conselho de Escolas, pedido pelo ministro João Costa, é conhecido esta sexta-feira.

27 out, 2023 - 07:00 • Fábio Monteiro , Rodrigo Machado (ilustrações)



Ilustração: Rodrigo Machado/RR
Ilustração: Rodrigo Machado/RR

O toque de saída soou há minutos, e os alunos, pouco a pouco, desaguam no recreio. Alguns navegam pelos corredores, em pequenas matilhas, à conversa, outros correm até ao bar, para escapar às filas. O campo de futebol já está ocupado, com várias bolas a rolar, e nas bancadas aglomeram-se adolescentes e mochilas, em círculos.

São 10h20 da manhã, hora do intervalo – o maior durante o período da manhã - em duas escolas: uma em Castelo Branco, outra em Viseu.

Ambos os estabelecimentos de ensino acolhem turmas do 1.º ao 3.º ciclo. Em linhas gerais, são muito semelhantes. Mas um é público e o outro privado. Num, os alunos vestem o que querem; noutro, usam um pólo ou camisola personalizada (nos dias comuns) e farda (em momentos especiais).

Mais importante: num é permitido o uso de telemóveis, noutro não.

Na escola básica Afonso Paiva, em Castelo Branco, é raro o adolescente que não caminhe de telemóvel na mão. É um apêndice tecnológico omnipresente. Como um reflexo pavloviano, a primeira coisa que muitos fazem, ao sair da sala de aula, é tirá-lo do bolso ou da mochila, nem que seja apenas para uma pequena espreitadela.

Mas há quem gaste todos os minutos de tempo livre no universo online, sem sequer se afastar muito da porta da sala de aula.

Em alguns corredores, debaixo de vãos de escadas, aglomeram-se grupos de alunos com telemóveis nas mãos e olhos plasmados nos ecrãs, sentados no chão e encostados à parede. Uns jogam, outros vêm vídeos do Youtube ou no TikTok, muitos trocam mensagens entre si.

Leandro é uma exceção à regra, mas não por querer. O rapaz frequenta o 6.º ano e “gostava” de ter telemóvel. Contudo, os pais ainda não tiveram possibilidade de lhe dar um. “Sou excluído da turma, às vezes tratam-me mal. Dizem que tenho uma deficiência, não tenho”, queixa-se.

Os alunos do 1.º ciclo da escola pública são os únicos proibidos de trazer telemóvel para o recinto. E também são os únicos que saltam à corda, de forma despreocupada.

Maria do Carmo trabalha há mais de três décadas na escola, é responsável por todas as auxiliares, e recorda um tempo em que os alunos “brincavam, jogavam mais”. Hoje, “não se divertem”, passam os intervalos de olhos colados no ecrã. “E depois tem tendência a sair asneiras.”

“Têm conversas que, muitas vezes, não são capazes de ter cara a cara em casa, com os amigos... Isto é uma realidade. Eles, atualmente, se tiverem problemas. ou resolvem de maneiras impróprias ou é tudo através do telemóvel.”


 

Por contraste com Castelo Branco, o ambiente do recreio do Colégio da Imaculada Conceição, em Viseu, parece desenhado por e para luditas digitais. Dentro de muros, não há likes, tweets ou shares. Não há pings, mas sim uma mesa de pingue-pongue. Desde 2018, os telemóveis ficam à porta – literalmente.

Todos os dias, ao chegarem ao colégio, os alunos são obrigados a entregá-los (já em modo sem som ou vibração) a um funcionário, na guarita, à entrada. Depois, só à saída, por norma, é que voltam a tê-los nas mãos.

Emanuel Miranda é quem recebe os telemóveis e os armazena em diferentes caixas por turma. Uma rotina que, volta e meia, ainda encontra resistência.

“Há sempre aquela tentativa, há sempre um ou dois que tentam, de uma maneira ou de outra, fazer com que o telemóvel passe ao nosso controlo, mas nós já estamos atentos a isso, e já estamos aqui há alguns aninhos. Tentamos controlar da melhor forma e normalmente corre sempre bem”, conta.

Na guarita, as caixas das turmas do 5.º ano estão quase vazias, mas no 6.º o cenário é diferente. “Por regra, conforme o ano vai subindo, aumenta o número de equipamentos que eles trazem”, diz Emanuel. A exceção parece ser o 7.º B, cuja caixa só tem um telemóvel.

Sem margem para dúvida, as caixas das turmas de 9.º ano são as mais cheias. Em parte, esse fenómeno justifica-se com o facto de muitos desses alunos já irem a pé para a escola e sozinhos para casa.

Nas traseiras do edifício principal, os alunos mais novos correm, jogam às escondidas, deixando atrás de si uma nuvem de pó. Um grupo de raparigas – ainda do 1.º ciclo – cochicha junto “à pedra do amor”, rochedo que, visto de certo ângulo, parece “metade de um coração”. Os mais velhos conversam, comem.

Fernando, funcionário do colégio, não tem dúvidas quanto ao sucesso da interdição tecnológica. Afinal, recorda, dantes os alunos “sentavam-se ali no banco junto à capela e estavam todos focados no telemóvel, não conversavam, não brincavam nem nada”.


 

Revolução em curso

Dizer que os telemóveis são um elemento tecnológico disruptor, em contexto escolar, não é novidade. Que podem ser usados indevidamente, criar vícios, gerar comportamentos problemáticos, idem aspas.

Em Portugal, há muito que o problema está sinalizado. E noticiado. Desde 2012, ou seja, há mais de uma década, o Estatuto do Aluno proíbe os alunos de filmarem ou fotografarem com o telemóvel na sala de aula.

O debate da interdição, contudo, apenas ganhou dimensão nacional já este ano, e foi bater à porta do Ministério da Educação, tutelado por João Costa. A primeira acha foi lançada a 8 de maio; em poucos dias, a petição “Viver o recreio escolar, sem ecrãs de smartphones!” arrecadou mais de 20 mil assinaturas e pôs o tema na agenda.

Em França, a proibição já vigora desde 2018. Nos Países Baixos, irá começar no próximo ano letivo. Um relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), publicado este ano, apela à proibição dos telemóveis em contexto escolar.

Porquê? A utilização excessiva de telemóveis está associada a uma diminuição do desempenho escolar, e níveis elevados de tempo de ecrã têm um efeito negativo na estabilidade emocional das crianças, indicam vários estudos.

No início de setembro, o ministro da Educação pediu um parecer ao Conselho das Escolas sobre o uso de telemóveis dentro dos estabelecimentos de ensino por se tratar de um “tema complexo” e para não decidir de “forma intempestiva”.

Ao que a Renascença conseguiu apurar, o parecer será votado e conhecido esta sexta-feira, 27 de outubro, à tarde.

No entretanto, o Bloco de Esquerda (BE) apresentou um projeto de lei para proibir o uso de telemóveis no recreio da escola para os alunos até ao 6.º ano, que acabou chumbado no passado dia 6 de outubro, na Assembleia da República, pelo PS e PSD. O PAN também apresentou um projeto-lei para combater o cyberbullying, onde se criariam "zonas livres de aparelhos tecnológicos", mas o destino foi o mesmo.

O único diploma aprovado nesse debate foi um projeto de lei do PS em que é recomendado ao Governo a elaboração de um estudo sobre a temática.

Proibir ou não proibir

João Lázaro é psicólogo clínico e tem uma opinião vincada sobre a proibição dos telemóveis nas escolas. “Estamos a morrer aos poucos na nossa relação humana, pelo uso abusivo dos telemóveis.” Mais que tudo, João Lázaro é pai de um rapaz de 14 anos. Por isso, tem acesso ao quotidiano escolar de um adolescente. “Tenho um filhote. Ele diz-me: Ó pai, há miúdos que estão ao lado um do outro e que estão a mandar mensagens um ao outro.”

Numa conversa a propósito de identidade de género, ainda no último verão, o filho de João Lázaro comentou: “Ó pai, se disser a um colega que vamos falar sobre isto ou faço uma pergunta, ele olha para mim com um ar mais ou menos atónito e diz: já viste este TikTok do gajo a comer um pacote de pimenta?”

O psicólogo clínico diz-se pouco otimista e alerta para uma perda “do contacto visual”, do “tom de voz” entre crianças e jovens e até adultos: “Aquilo que faz a comunicação é só a palavra e a ideia contida na palavra.”

Ao usarem o telemóvel como intermediário de muitos dos seus contactos e diálogos, tanto adultos como crianças estão a perder “a competência de se lerem uns aos outros”.

“Quando escrevemos uma mensagem, quem lê do outro lado não lê o tom de voz, lê a palavra. Então, interpreta-a consoante o seu estado de espírito, conforme o pré-conceito que tem acerca do outro”, explica o psicólogo.

Cético de posições absolutistas, João Lázaro defende que é necessária uma “atitude pedagógica de ensinar, de consciencializar as pessoas”. Proibir “é como se quiséssemos parar os relógios para parar o tempo”.

“Tenho é que educar as pessoas a saberem usar o telemóvel com alguma parcimónia e sobretudo terem consciência de quanto estão a perder, quantas oportunidades perdem, de: se posso falar diretamente, porque é que vou falar com uma máquina ou através de uma máquina?”

Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), partilha da opinião do psicólogo clínico. Defende que é preciso “entregar o sentido de responsabilidade aos alunos”. E mais: cada escola, tendo em conta a sua realidade, deve ter liberdade de tomar as medidas que julgue adequadas.

“Acho que cada escola deve tomar as decisões de acordo com a comunidade em que está inserida”, afirma.

No estabelecimento de ensino que dirige, em Cinfães, desde o arranque do ano letivo, Manuel impôs o que diz ser “uma proibição racional”. Os alunos podem trazer o telemóvel, "nós não ficamos com nenhum telemóvel, cada um tem o seu", mas não podem "é usá-lo nos espaços públicos da escola”.

Segundo o dirigente da ANDE, a interdição – tomada em conjunto com a comunidade escolar, “praticamente com a unanimidade” total dos pais – “tem corrido muitíssimo bem”, garante.

“Nós não fazemos caça às bruxas nas escolas, com certeza. Mas os próprios miúdos encarregam-se de resolver o assunto. Portanto, não deixam que os outros usem os telemóveis na escola. Tem corrido muitíssimo bem.”


 

Uma solução

No Colégio da Imaculada Conceição, em Viseu, a decisão de proibir o uso de telemóvel não foi tomada de ânimo leve ou por impulso. Afinal, data já de 2018, muito antes de o tema ter entrado na agenda pública.

A interdição adveio de situações que, na última década, se foram tornando mais comuns: alunos que “não interagiam” uns com os outros durante o período de recreio, que “não conversavam nem brincavam”, conta Maria da Conceição, diretora-geral da instituição, à Renascença.

Um episódio em particular, contudo, foi decisivo: um aluno tirou fotografias de um colega no balneário e publicou-as nas redes sociais.

“Achámos que isto era uma coisa completamente ridícula. Um professor deu conta e mandou de imediato retirar. Achamos que [o uso do telemóvel] não era saudável na relação uns com os outros, não era saudável na forma como era utilizado, deixava os alunos ansiosos por chegar ao intervalo e estarem logo de telemóvel na mão”, conta.

Paula Martins, diretora pedagógica da mesma instituição, sublinha que, ao início, ainda foi equacionada a ideia de ser feita “uma consciencialização” do uso do telemóvel junto dos alunos. “O ideal era não ser preciso a proibição.” Mas após conversas com os professores, “vimos que não, que tínhamos de ser mais radicais; de um ano para o outro, foram completamente proibidos”.

O facto de os alunos do colégio provirem de estrato social mais elevado pode ter influenciado a adoção da medida? “Penso que não está relacionado", diz Paula Martins. "Mas o facto de sermos uma escola privada facilita-nos a proibição. Temos autonomia total. Um pai que não concorde com a medida conhece as regras, não vai cá colocar o filho se não concordar.”

Os alunos do Colégio da Imaculada Conceição podem levar o telemóvel para a escola, mas devem deixá-lo na guarita, à responsabilidade de um funcionário, mal entram. Se necessário em contexto de sala de aula, por opção de um professor, podem sempre ir buscá-lo.

“Não estamos contra tudo o que é uso tecnológico, estamos é contra o uso indevido”, nota Paula Martins.

Há cinco anos, é de notar nem todos os pais dos alunos reagiram de forma positiva à mudança. Houve até alguma resistência, porque “os pais queriam ter ligação direta com os filhos”. Mas “mesmo, mesmo contra só tive um pai”, destaca Maria da Conceição.

Os alunos mais velhos – “principalmente do 7.º ano para cima” – também reclamaram da mudança. E, esporadicamente, ainda voltam ao tema.

“De vez em quando levanta-se a lebre dos telemóveis, mas depois, como temos uma relação muito próxima com os alunos, eu própria explico o porquê e eles acabam por compreender. Eles acabam por perceber que os perturba menos, quer a cabeça quer o coração. O facto de não terem os telemóveis com eles liberta-os, têm um outro tipo de liberdade”, diz a diretora-geral do colégio.

Para as responsáveis do Colégio da Imaculada Conceição, é inegável, pois, que o telemóvel é difícil de largar. Gruda-se com facilidade, tanto nas mãos como na cabeça dos alunos, ocupa espaço. Depois de um período de férias, por exemplo, é notório que “é difícil para os alunos desligarem”.

“Vimos que lhes custa nos primeiros intervalos. E agora o que fazemos? Ainda aqui há dias um grupo do 9.º ano falava disso comigo, que não sabem muito bem que fazer sem o telemóvel, que podiam estar a mostrar um vídeo, que podiam estar a fazer isto e aquilo, que também não estariam a fazer nada de mal”, conta Paula Martins.

Em todo o caso, como uma barragem que contém um rio, a interdição nunca deixa de ser uma forma artificial – forçada – de controlo. Produz efeitos, mas limitados.

“Por vezes, temos [no recreio] os mais velhos a jogar às escondidas com os mais novos. Eles acabam por redescobrir essas brincadeiras. Agora, claro que se lhes déssemos opção, eles iriam buscar o telemóvel. Ao mesmo tempo, há alguns que já nem o trazem para a guarita. E há mesmo um grupo que defende o não uso, mas não querem assumir muito perante os colegas”, diz a diretora.


 

Uma realidade

Ninguém da direção da escola básica Afonso Paiva, em Castelo Branco, duvida que os telemóveis são um problema. Ninguém duvida também que é necessário fazer alguma coisa. Mas uma interdição total – nos mesmos moldes da que ocorre em Viseu – não é um caminho fácil de seguir.

Numa escola pública, mesmo que o parecer do Conselho de Escolas assim o determine, é algo dificilmente exequível, nota a subdiretora Zélia Magueijo à Renascença.

“Temos de tomar medidas que consigamos controlar. E aí temos de ter algum apoio dos pais. Proibimos os telemóveis? Como é que sabemos que eles não trazem? Não podemos revistar os alunos todos de manhã. Temos de ponderar muito bem uma medida que seja adequada e não se perca.”

A subdiretora defende, pois, uma solução de compromisso, um “meio-termo”, até de forma a não perder as “mais-valias, como aulas que integram o uso do telemóvel com proveito muito grande”.

“Assusta-nos o comportamento no intervalo. Eles chegam a estar a mandar mensagens uns para os outros, dentro do grupo onde estão fisicamente e no mesmo espaço. É preocupante? É”, diz. “É preciso fazer alguma coisa em prol dos alunos. Não é normal. Eles sentam-se e a primeira coisa que fazem é olhar para o telemóvel. Se não houver banco, é até no chão. Onde é que é? É onde a rede é mais forte.”

Por princípio, Luís Santos, diretor da escola Afonso Paiva, também não é favorável a interdições. “As frases que começam por ‘não’ criam logo à partida alguns transtornos. Agora, reconheço que, nos dias de hoje, algo tem de ser feito”, sublinha.

Como acontece noutros estabelecimentos de ensino, os telemóveis já geraram muitos problemas dentro dos muros da Afonso Paiva. Desde o início do ano letivo, por exemplo, já se deu o caso de um aluno que fotografou o professor na sala de aula e publicou nas redes sociais.

“Acho, sinceramente, que é uma situação que se está a banalizar, tanto que os próprios alunos já têm alguma dificuldade em perceber o que devem fazer ou não, noção do grave que é essa utilização.”

No final do ano letivo 2022/23, na escola Afonso Paiva, numa reunião com os representantes de pais, os telemóveis já foram tema de discussão. Todos os presentes concordaram: além de potenciarem comportamentos errados, os alunos “já não brincam nem conversam”.

No corrente ano letivo, o debate voltou. No passado dia 18 de outubro, Luís Santos reuniu-se com os representantes dos encarregados de educação e colocou uma proposta em cima da mesa: a proibição dos telemóveis “nos intervalos grandes” – ou seja, os de 20 ou 15 minutos.

“A ideia é que esses intervalos servissem para comer, para conversar entre eles, para fazerem outro tipo de coisas que não usar o telemóvel. E depois durante o resto do dia que o possam fazer. Neste momento, não é permitido usar no refeitório. Podemos ainda restringir no bar dos alunos. Criar aqui algumas restrições, mas não propriamente proibir a entrada no que é o recinto escolar”, diz.

A proposta de interdição nos intervalos mais longos foi bem acolhida pelos pais e, nos próximos meses, deverá mesmo seguir para a frente. “Gostaria que começasse até janeiro de 2024”, antecipa o diretor.

O pressuposto, claro, é “responsabilizar os alunos”. Luís Santos espera que seja o suficiente para controlar o problema. Até porque não consegue imaginar outras alternativas menos drásticas.

“Se não encontrarmos aqui um meio-termo, que é aquilo que eu gostaria que acontecesse, sinceramente penso que não há grandes alternativas para conter a escalada de utilização do telemóvel que não a proibição.”


 

Mudança a caminho

O intervalo terminou – nas duas escolas. Lentamente, os alunos encaminham-se para as salas de aula.

A turma da professora Mafalda, no Colégio da Imaculada Conceição, em Viseu, já está sentada, mas a energia do recreio ainda não se dissipou. Risos e palavras rebentam no ar.

Encostada à porta da sala de aula, a docente tenta conversar com a Renascença, partilhar a sua experiência profissional. No entanto, tem dificuldade em fazer-se ouvir.

Num rasgo, Mafalda solta a canónica exclamação: “Ó, meninos, silêncio.” Em menos de três segundos, o coro de jovens perde decibéis.

Mafalda é jovem e ainda é relativamente nova dentro do colégio. Até há pouco tempo, dava aulas em escolas que permitiam o uso de telemóvel no recreio. Por isso mesmo, não tem dificuldade em exprimir uma opinião quanto à interdição.

“[O uso de telemóveis] gera sempre situações desagradáveis, facilita muitos problemas entre eles, mesmo ao nível no bullying. Fotografias que tiram entre eles e que vão parar às redes sociais.”

Uns corredores à frente, aparece Ana – equipada e pronta para a aula de Educação Física que vai ter. Frequenta o 6.º ano e já tem telemóvel. Na maioria dos dias, trá-lo para a escola e deixa-o na guarita, como ditam as regras. “Às vezes, os professores pedem para nós usarmos, pesquisarmos ou alguma coisa”, explica.

Apesar de só ter 11 anos, a rapariga é honesta e admite que gerir o uso do telemóvel não é tarefa fácil. “Gosto de o deixar [na guarita]. Se nós tivéssemos o telemóvel, íamos estar sempre neles, não iriamos interagir uns com os outros, só iríamos estar no telemóvel. Acho que é mais engraçado estarmos a brincar e essas coisas.”

Ao mesmo tempo, admite também que há colegas de turma que “gostavam de trazer o telemóvel para o recreio”.

A mãe de Ana é professora no colégio, por isso, logo à partida, a margem para reivindicação da jovem é mais limitada. O que aconteceria se insistisse que gostava de utilizar o telemóvel no recreio? “Sei o que a minha mãe vai dizer: isso é uma estupidez”, partilha entre risos.

Em boa verdade, a vida de Ana não gira em torno do telemóvel - por agora. Mas no futuro pode ser diferente, tendo em conta o exemplo da sua irmã mais velha. “Eu não ligo muito ao telemóvel, mas acho que é só agora. Segundo o que vejo da minha irmã, é assim: ela quando tinha a minha idade também não ligava muito e agora sim”, admite.

Salvo funcionários, findo o intervalo, o recreio em Viseu está vazio. Em Castelo Branco, na escola Afonso Paiva, aproximadamente à mesma hora, o cenário é diferente. Pelo menos uma turma de 5.º ano teve furo.

O professor de Educação Musical de Ana, Gabriel, Bianca e Carolina faltou. Os quatro jovens estão, pois, sentados na bancada do campo de futebol, como que em torno de uma fogueira digital.

Gabriel segura um tablet nos braços (deixou os seus dois smartphones em casa), enquanto Ana lhe mostra um vídeo do jogo Roblox no seu telemóvel. Bianca tecla uma mensagem para a mãe e Carolina apenas observa e conversa – é a única do grupo que não tem (ainda) apêndice tecnológico. “O meu pai ainda não mo comprou”, justifica.

Ana recebeu um telemóvel aos 10 anos, por iniciativa dos pais. “O meu pai decidiu dar-me. Eu gosto de utilizar só nos intervalos, na sala [de aula] não.” Gabriel recebeu um dos seus telemóveis como “prenda de Natal” e outro ganhou-o “num concurso de ciência em Aveiro”.

O telemóvel de Bianca é o único que tem teclas, que não tem um ecrã a cores, que não dá para ver vídeos no Youtube. Tem um ou dois jogos básicos, dá para fazer chamadas e mandar mensagens, o básico. Usa-o para falar com os pais, quase em todas as interrupções escolares.

“Ligo para dizer que já estou na escola, vou ao bar. E vou à papelaria. Outras vezes é a minha mãe que liga.”

Talvez sem surpresa, Gabriel – o mais tecnológico dos quatro amigos – é o mais reticente face à ideia de não poder utilizar o telemóvel no recreio. “Eu não ia gostar”, diz em tom de sentença.

Ana contrapõe: “Acho que ia gostar. Às vezes fico muito tempo no telemóvel e eu gosto de apanhar ar fresco – de vez em quando.”

Sem hesitar, Gabriel acrescenta: “Tu podes apanhar ar fresco até com o telemóvel. É só largar o telemóvel, ir apanhar ar fresco. É só largar e andar por aí.”

Carolina, a única sem apêndice digital, aproveita então a oportunidade para lançar uma ideia: “Fixe era se tivéssemos baloiços. E um escorrega.”


 

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