Novos argumentos, novos eleitores
Há cinco anos, o Chega “furou” a praça pública portuguesa (captando a atenção de rádios, jornais e televisões) com discursos polémicos – muitos dos quais classificados como racistas, xenófobos ou demagógicos – sobre a comunidade cigana ou os beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI).
“Coisas que muitas pessoas provavelmente já sentiam”, mas não diziam abertamente, sustenta Vicente Valentim.
A comunidade cigana, por exemplo, “encaixava muito bem, em termos de conteúdo, era fácil de justificar a sua exclusão dos ‘portugueses de bem’, aquela expressão que André Ventura usa muitas vezes”, lembra Susana Salgado.
Então, o partido de André Ventura estava ainda em fase de afirmação. “É estratégico para esses partidos dizerem essas coisas que são chocantes, que são controversas, que vão contra normas sociais, precisamente para dar um sinal às pessoas de que 'se é isto que vocês pensam, é em mim que devem votar'”, explica Vicente Valentim.
"A questão da comunidade cigana desapareceu e foi substituída pela retórica contra a imigração muçulmana, como é típico de outras direitas radicais pela Europa fora", nota David Pimenta
Agora, o momento é outro. O Chega já está em fase de consolidação. A confirmarem-se as sondagens, será novamente o terceiro partido mais votado nas próximas eleições e aumentará o número de deputados. Enquanto um dos “players centrais” do sistema partidário, a questão que enfrenta é: como crescer mais?
Movendo-se “um bocadinho mais para o centro”, diz o investigador da Universidade de Oxford.
A mudança de temas é, pois, um reflexo da tentativa de captar mais eleitorado. Porém, isso não quer dizer que as antigas bandeiras tenham caído no esquecimento. “Há um entendimento tácito de que continua a ser o partido que representa esse tipo de visões.”
No que toca a argumentos, o Chega de 2024 está mais próximo dos partidos da direita radical europeia do que do Chega de 2019. “A questão da comunidade cigana desapareceu e foi substituída pela retórica contra a imigração, nomeadamente imigração muçulmana, como é típico de outras direitas radicais pela Europa fora”, aponta David Pimenta.
O investigador nota que a genealogia do populismo de André Ventura "encontra-se mais no estrangeiro do que em Portugal". O líder e fundador do Chega é “o primeiro populista em Portugal que representa a casa da direita radical europeia. É o primeiro a surgir em Portugal associado a esta família política.”
Mais ainda: uma das consequências da retórica (antiga e nova) do Chega é a contaminação do discurso de outros partidos – o que pode ser uma armadilha.
"Os partidos de centro-direita que se aproximam da retórica da direita radical, não só não ganham mais votos, como aumentam os votos na direita radical, porque há essa perceção no eleitorado de que, 'bem, para isso temos a versão original, porque é que vamos votar na cópia?'", sublinha Vicente Valentim.
É um partido com "grande plasticidade" que se ajusta "à ideologia à qual vai beber" e "ao contexto no qual está inserido", diz Susana Salgado
Se houve temas que saíram do “argumentário” de André Ventura, de acordo com a análise da Renascença, outros ganharam mais espaço. A destacar, há dois: a imigração – tópico que se infiltrou na campanha eleitoral, nos últimos dias, após declarações de Pedro Passos Coelho num comício da AD – e as políticas sobre identidade de género (que o partido chama de “ideologia de género”).
Ambos fazem parte do repertório da direita radical europeia.
“O tema da imigração não é um tema tão saliente em Portugal como é em outros países europeus. Mas também é cada vez mais saliente”, nota David Pimenta.
Na última ronda de debates televisivos, a imigração apareceu nos confrontos com Mariana Mortágua (minuto 19) e Rui Rocha (minuto 20). A chamada “ideologia de género” veio a lume com o Bloco de Esquerda (minuto 28) e o Livre (minuto 18), enquanto há dois anos surgiu apenas no embate com Francisco Rodrigues dos Santos do CDS-PP.
A propósito da imigração, Susana Salgado sublinha que a realidade nacional mudou nos últimos anos. A comunidade imigrante cresceu – duplicou desde 2013 – e passámos a ter “notícias a toda a hora sobre diferentes tipos de imigração”.
O Chega, enquanto partido com “grande plasticidade”, ajusta-se “àquilo que é a ideologia à qual vai beber e, por outro lado, ao contexto específico no qual está inserido”, diz a especialista.
O homem irregular
Dos três especialistas, o menos surpreso com a inflexão no discurso de André Ventura, em vésperas de legislativas, é David Pimenta. Afinal, há dois anos, o investigador já havia sinalizado o mesmo fenómeno.
Em coautoria com Eduardo Gonçalves e José Pedro Zúquete, David Pimenta publicou o artigo científico "O populista irregular: André Ventura, o líder do Chega". Aí, tendo por base uma análise de discursos, entrevistas e até tweets, entre 2020 e 2022, uma das principais características sinalizadas foi precisamente a “irregularidade do populismo” do candidato a deputado.
“Estes partidos que são conotados como partidos populistas têm muitos momentos do chamado pluralismo. Nomeadamente, quando nalguns discursos internos temos André Ventura ou outros dirigentes a tentar passar a mensagem: ‘Bom, atenção, nós somos um partido democrático, temos de respeitar as regras democráticas’”, explica.
Outro detalhe relevante, que o mesmo artigo sinaliza, é que André Ventura, enquanto foi candidato a Presidente da República em 2021, também baixou uma oitava no discurso populista.
Porquê? “O Chega pode olhar para o cargo presidencial como mais institucional, mais sóbrio, e isso pode ter impacto nessa avaliação.”
Nada disto é totalmente novo. Ou inédito. Como um camaleão político, André Ventura adapta os seus argumentos consoante o adversário.
Se debate com Mariana Mortágua, o líder do Chega entra num discurso “mais pelas questões das guerras culturais, desde a ‘ideologia de género’, a imigração, etc.” Frente a Luís Montenegro, “procura ser mais institucional, procura ser mais uma opção, aos olhos do eleitor, de um líder que pode governar Portugal.”