Como o discurso do Chega mudou e o que isso diz da sua estratégia

O argumentário de André Ventura mudou, mas isso não significa que esteja mais moderado. Nos debates televisivos deste ano, de acordo com uma análise da Renascença, o líder do Chega nunca referiu temas como a comunidade cigana, cortes no RSI ou o fim das subvenções vitalícias. Especialistas falam em estratégia para captar eleitorado ao centro, decalcada da extrema-direita europeia. E sublinham: os partidos de centro-direita que se aproximam desta retórica “não só não ganham mais votos, como aumentam os votos na direita radical.”

05 mar, 2024 - 08:30 • Fábio Monteiro (texto) e Maria Costa Lopes (vídeo)



Como o discurso do Chega mudou e o que isso diz da sua estratégia

Nos últimos cinco anos, houve mudanças e oscilações na postura de André Ventura. Mais notórias ou mais subtis, estão presentes no estilo de comunicação, mas também nos argumentos políticos que usa para tentar captar eleitorado. Com a perspetiva de integrar uma solução de governo no horizonte, estará o Chega num processo de moderação em curso?

A Renascença revisitou todos os debates televisivos para eleições legislativas (2019, 2022 e 2024) em que André Ventura participou. E um facto destacou-se: muitos dos temas polémicos que catapultaram André Ventura para o Parlamento, há cinco anos, desapareceram do discurso.

Na última ronda de debates, Ventura não referiu a comunidade cigana em nenhum momento. Cortes no Rendimento Social de Inserção (RSI)? Nunca. Fim das subvenções vitalícias de políticos? Zero. Redução do número de deputados no Parlamento? Nada. (A ideia ainda consta do programa do Chega.)

Para tentar compreender esta inflexão, a Renascença conversou com três especialistas: Vicente Valentim, investigador sobre populismo da Universidade de Oxford; Susana Salgado, especialista em comunicação política do Instituto de Ciências Sociais (ICS) em Lisboa; e David Pimenta, especialista em extrema-direita, também do ICS.

Todos concordam que há, de facto, uma mudança de guião no Chega. Mas isso não quer dizer que o partido de André Ventura esteja mais moderado. Está, sim, numa nova fase de crescimento, à caça de novos eleitores, e mais parecido com os seus congéneres europeus.

O populismo em Portugal, sublinham também, não começou apenas em 2019.


André Ventura e Rui Rocha no debate entre líderes partidários com assento parlamentar. Foto: Pedro Pina/RTP
André Ventura e Rui Rocha no debate entre líderes partidários com assento parlamentar. Foto: Pedro Pina/RTP

Novos argumentos, novos eleitores

Há cinco anos, o Chega “furou” a praça pública portuguesa (captando a atenção de rádios, jornais e televisões) com discursos polémicos – muitos dos quais classificados como racistas, xenófobos ou demagógicos – sobre a comunidade cigana ou os beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI).

“Coisas que muitas pessoas provavelmente já sentiam”, mas não diziam abertamente, sustenta Vicente Valentim.

A comunidade cigana, por exemplo, “encaixava muito bem, em termos de conteúdo, era fácil de justificar a sua exclusão dos ‘portugueses de bem’, aquela expressão que André Ventura usa muitas vezes”, lembra Susana Salgado.

Então, o partido de André Ventura estava ainda em fase de afirmação. “É estratégico para esses partidos dizerem essas coisas que são chocantes, que são controversas, que vão contra normas sociais, precisamente para dar um sinal às pessoas de que 'se é isto que vocês pensam, é em mim que devem votar'”, explica Vicente Valentim.

"A questão da comunidade cigana desapareceu e foi substituída pela retórica contra a imigração muçulmana, como é típico de outras direitas radicais pela Europa fora", nota David Pimenta

Agora, o momento é outro. O Chega já está em fase de consolidação. A confirmarem-se as sondagens, será novamente o terceiro partido mais votado nas próximas eleições e aumentará o número de deputados. Enquanto um dos “players centrais” do sistema partidário, a questão que enfrenta é: como crescer mais?

Movendo-se “um bocadinho mais para o centro”, diz o investigador da Universidade de Oxford.

A mudança de temas é, pois, um reflexo da tentativa de captar mais eleitorado. Porém, isso não quer dizer que as antigas bandeiras tenham caído no esquecimento. “Há um entendimento tácito de que continua a ser o partido que representa esse tipo de visões.”

No que toca a argumentos, o Chega de 2024 está mais próximo dos partidos da direita radical europeia do que do Chega de 2019. “A questão da comunidade cigana desapareceu e foi substituída pela retórica contra a imigração, nomeadamente imigração muçulmana, como é típico de outras direitas radicais pela Europa fora”, aponta David Pimenta.

O investigador nota que a genealogia do populismo de André Ventura "encontra-se mais no estrangeiro do que em Portugal". O líder e fundador do Chega é “o primeiro populista em Portugal que representa a casa da direita radical europeia. É o primeiro a surgir em Portugal associado a esta família política.”

Mais ainda: uma das consequências da retórica (antiga e nova) do Chega é a contaminação do discurso de outros partidos – o que pode ser uma armadilha.

"Os partidos de centro-direita que se aproximam da retórica da direita radical, não só não ganham mais votos, como aumentam os votos na direita radical, porque há essa perceção no eleitorado de que, 'bem, para isso temos a versão original, porque é que vamos votar na cópia?'", sublinha Vicente Valentim.

É um partido com "grande plasticidade" que se ajusta "à ideologia à qual vai beber" e "ao contexto no qual está inserido", diz Susana Salgado

Se houve temas que saíram do “argumentário” de André Ventura, de acordo com a análise da Renascença, outros ganharam mais espaço. A destacar, há dois: a imigração – tópico que se infiltrou na campanha eleitoral, nos últimos dias, após declarações de Pedro Passos Coelho num comício da AD – e as políticas sobre identidade de género (que o partido chama de “ideologia de género”).

Ambos fazem parte do repertório da direita radical europeia.

“O tema da imigração não é um tema tão saliente em Portugal como é em outros países europeus. Mas também é cada vez mais saliente”, nota David Pimenta.

Na última ronda de debates televisivos, a imigração apareceu nos confrontos com Mariana Mortágua (minuto 19) e Rui Rocha (minuto 20). A chamada “ideologia de género” veio a lume com o Bloco de Esquerda (minuto 28) e o Livre (minuto 18), enquanto há dois anos surgiu apenas no embate com Francisco Rodrigues dos Santos do CDS-PP.

A propósito da imigração, Susana Salgado sublinha que a realidade nacional mudou nos últimos anos. A comunidade imigrante cresceu – duplicou desde 2013 – e passámos a ter “notícias a toda a hora sobre diferentes tipos de imigração”.

O Chega, enquanto partido com “grande plasticidade”, ajusta-se “àquilo que é a ideologia à qual vai beber e, por outro lado, ao contexto específico no qual está inserido”, diz a especialista.

O homem irregular

Dos três especialistas, o menos surpreso com a inflexão no discurso de André Ventura, em vésperas de legislativas, é David Pimenta. Afinal, há dois anos, o investigador já havia sinalizado o mesmo fenómeno.

Em coautoria com Eduardo Gonçalves e José Pedro Zúquete, David Pimenta publicou o artigo científico "O populista irregular: André Ventura, o líder do Chega". Aí, tendo por base uma análise de discursos, entrevistas e até tweets, entre 2020 e 2022, uma das principais características sinalizadas foi precisamente a “irregularidade do populismo” do candidato a deputado.

“Estes partidos que são conotados como partidos populistas têm muitos momentos do chamado pluralismo. Nomeadamente, quando nalguns discursos internos temos André Ventura ou outros dirigentes a tentar passar a mensagem: ‘Bom, atenção, nós somos um partido democrático, temos de respeitar as regras democráticas’”, explica.

Outro detalhe relevante, que o mesmo artigo sinaliza, é que André Ventura, enquanto foi candidato a Presidente da República em 2021, também baixou uma oitava no discurso populista.

Porquê? “O Chega pode olhar para o cargo presidencial como mais institucional, mais sóbrio, e isso pode ter impacto nessa avaliação.”

Nada disto é totalmente novo. Ou inédito. Como um camaleão político, André Ventura adapta os seus argumentos consoante o adversário.

Se debate com Mariana Mortágua, o líder do Chega entra num discurso “mais pelas questões das guerras culturais, desde a ‘ideologia de género’, a imigração, etc.” Frente a Luís Montenegro, “procura ser mais institucional, procura ser mais uma opção, aos olhos do eleitor, de um líder que pode governar Portugal.”


 Foto: Hugo Delgado/Lusa
Foto: Hugo Delgado/Lusa

O fenómeno

Para os especialistas com quem a Renascença falou, André Ventura é populista. Mas o conceito de populismo é mais difícil de definir do que, à primeira vista, pode parecer. E deve ser manuseado com cuidado.

Primeiro, porque é um termo muitas vezes utilizado de forma indiscriminada na praça pública. “Não podemos dizer, de repente, que tudo é populista. Ou que tudo é populismo. Populismo como sinónimo de demagogia, populismo como sinónimo de racismo, populismo como sinónimo de tudo e mais alguma coisa”, nota Susana Salgado.

Segundo, porque é uma “ideologia fina”, dada a metamorfoses, que se “adapta a outras ideologias”, diz David Pimenta. Tudo varia "consoante o momento, o público".

"Acho ingénuo pensarmos que os portugueses são diferentes dos outros europeus", sublinha David Pimenta

No entender do especialista, “para existir populismo tem que haver uma retórica que oponha um povo puro ou virtuoso contra uma elite corrupta e desvirtuada, que é a causa dos males de um determinado país.” Por outras palavras: tem de existir uma dinâmica de “nós” contra “eles”.

Nos debates de André Ventura, revisitados pela Renascença, é fácil encontrar exemplos deste tipo de antagonismo.

Em 2019, no debate dos pequenos partidos, minuto 73, a propósito da carga fiscal: “Andamos a sustentar quem não devíamos e a distribuir dinheiro por quem não devíamos.”

Em 2022, frente a António Costa, minuto 14, sobre uma possível descida de impostos: “Andamos a pagar milhares de casas a quem não quer trabalhar, com o esforço do nosso IMI.”

No mesmo ano, diante de Rui Tavares, minuto 7, sobre o RSI: “É isto que a esquerda humanista quer. Pagar a toda a gente para não fazer nada.”

Em 2024, com Paulo Raimundo, minuto 5, quanto ao confisco de bens em casos de corrupção: Acusados “continuam a viver nos palácios que sempre habitaram”.

E com Rui Rocha, minuto 20, sobre o aumento da imigração em Portugal: “Vagas e vagas de pessoas chegam sem controlo. Temos terroristas a andar pelo país.”

A abundância de exemplos nas palavras de André Ventura, ainda assim, não faz do Chega o único partido em Portugal a empregar uma estratégia populista, sublinha Susana Salgado. E também não significa que o fenómeno tenha começado apenas há cinco anos.

Quão populistas somos?

O populismo em Portugal é um fenómeno antigo: remonta, pelo menos, ao século XIX, nota o investigador e professor universitário José Pedro Zúquete, no livro “Populismo – Lá fora e cá dentro”, editado em 2022 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Desde o 25 de abril de 1974, foram muitos os líderes políticos – à direita e à esquerda – a receber essa etiqueta. Nomes como Otelo Saraiva de Carvalho, Alberto João Jardim, Manuel Monteiro ou Paulo Portas são consensuais, constam de vários artigos científicos sobre o tema.

A política autárquica “sempre foi um terreno fértil para o surgimento de políticos populistas”, lembra também Susana Salgado à Renascença. Nem por acaso, André Ventura tornou-se conhecido dos portugueses nas autárquicas de 2017, quando concorreu pelo PSD à Câmara Municipal de Loures, e proferiu afirmações xenófobas (com base num estudo inventado) sobre a comunidade cigana.

No passado, partidos como o CDS-PP ou o Bloco de Esquerda (consoante os líderes do momento) já foram também conotados com o fenómeno. “O Bloco de Esquerda também tem algumas pessoas com um estilo mais populista e outras com um estilo menos populista”, sublinha a especialista em comunicação política.

Mas o Chega é outra coisa. O partido de André Ventura é o primeiro partido a conseguir captar e canalizar, com sucesso, a agenda da direita radical europeia. Neste ponto, a opinião dos três especialistas políticos ouvidos pela Renascença coincide.

Durante muitos anos, o Partido Nacional Renovador (PNR), hoje Ergue-te, tentou ocupar o mesmo espaço que o Chega, mas “sempre sem sucesso”, lembra Vicente Valentim.

Em 2019, André Ventura ultrapassou José Pinto Coelho com grande facilidade.

Segundo Susana Salgado, um dos factos surpreendentes no que toca ao partido de André Ventura é que este não tem qualquer “prurido” nem tenta “escamotear” a sua “identidade”. Pelo contrário: “Há uma utilização disso para demonstrar a diferença.”

“Isso passa quer pelas ideias, quer pela agenda, quer também pelo estilo propriamente dito de falar sobre a política. Geralmente, é um estilo menos cordial, menos polido, é um estilo que é de facto transgressivo em relação àquilo que é o politicamente correto. Por um lado, ajuda a marcar a diferença com os partidos tradicionais, e por outro lado ajuda a maximizar a atenção dada ao partido”, explica.

Sobre a eficácia da estratégia, há um fator que para David Pimenta é ponto assente: os portugueses não são imunes ao fenómeno. Têm o “mesmo potencial” de “abertura a soluções políticas de direita radical”.

“Não acredito no excecionalismo português nem dos portugueses. Isso acho que é uma miragem. Nós também achávamos há alguns anos que não podiam existir partidos de direita radical em Portugal e agora existe um e está em terceiro lugar nas sondagens. Acho ingénuo pensarmos que os portugueses são diferentes dos outros europeus.”


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