Eleitores do Chega "não são tolos", sabem que o partido "tem posições racistas"

A origem de mais de um milhão de votos no Chega é ainda uma incógnita. Porém, especialistas ouvidos pela Renascença defendem que é “paternalista” e “condescendente” afirmar, como fez Pedro Nuno Santos, que “não há 18% votantes racistas ou xenófobos em Portugal”. Dados indicam que 62% dos portugueses têm crenças racistas. “Quem vota no Chega tem de estar, pelo menos parcialmente, de acordo com aquilo que é defendido por esse partido”, diz Teresa Pizarro Beleza, coordenadora do Observatório do Racismo e Discriminação.

26 mar, 2024 - 07:00 • Fábio Monteiro



Ilustração: Rodrigo Machado/RR
Ilustração: Rodrigo Machado/RR

Um voto não é um bingo. Não é preciso ser subscritor da medida X, da ideia Y e desejar combater a corrupção pela via Z, para que, no momento de ir às urnas, um cidadão decida apoiar um partido. A realidade política é mais fluída do que isso, e os programas eleitorais são escritos ao gosto de mais do que um freguês.

Agora, um eleitor é um cidadão responsável, alguém que faz escolhas de forma consciente. É essa a premissa do voto em democracia. Se vota num partido por protesto, porque o líder diz-as-coisas-como-elas-são, ou devido à medida X, está, implicitamente, a tolerar (ou ignorar) as restantes ideias do programa.

É um desafio, portanto, interpretar o último resultado eleitoral do Chega – partido anti-imigração e com um histórico de acusações de racismo e xenofobia – sem fazer generalizações.

De onde vieram os 1.169.836 votos do partido de André Ventura? Quem são estes eleitores? E em que acreditam? De momento, há poucas respostas. Acontece que, ainda na noite eleitoral de 10 de março, o secretário-geral do Partido Socialista, Pedro Nuno Santos, apressou-se a excluir uma.

“Não há 18% votantes racistas ou xenófobos em Portugal, mas há muitos portugueses zangados que sentem que não têm tido representação", disse.

Factualmente, as palavras de Pedro Nuno Santos não têm sustento, sublinham três especialistas ouvidos pela Renascença. Na realidade, há estudos que apontam no sentido oposto.

A posição do líder do PS e dos restantes líderes políticos, tanto à esquerda como à direita, que alinharam na narrativa de Pedro Nuno Santos, é “condescendente” para com o problema do racismo em Portugal. E “paternalista” para com os eleitores, diz Miguel Vale de Almeida, investigador, antropólogo e autor do livro “Um Mar da Cor da Terra: Raça, Cultura e Política da Identidade”, à Renascença.

“Deixa-se completamente de lado o facto de que as pessoas não são tolas e nós não podemos ser paternalistas em relação aos nossos concidadãos. As pessoas sabem muito bem no que votam. Portanto, podem ter motivações específicas, mas sabem que estão a votar num partido que tem determinadas posições e que tem determinada linguagem, que é manifestamente racista.”

Teresa Pizarro Beleza, coordenadora do Observatório do Racismo e Discriminação, partilha da mesma opinião. “Quem vota no Chega tem de estar, pelo menos parcialmente, de acordo com aquilo que é defendido por esse partido. Caso contrário, estamos a dizer que as pessoas não sabem em quem é que votam. E isso não é aceitável em democracia no meu entender.”

Afinal, não estamos a falar do país que, em 2007, num programa da RTP, elegeu António de Oliveira Salazar como “o maior português de sempre”? E do mesmo país em que, de acordo com dados do Inquérito Social Europeu (ISE) de 2021, 62% da população tem ideias racistas?

Quem discorda de todas as crenças racistas? Segundo o ISE, apenas 11% da população.


Processo de contagem de votos. Foto: José Sena Goulão/Lusa
Processo de contagem de votos. Foto: José Sena Goulão/Lusa

Paternalismo e conservadorismo

O porquê das palavras de Pedro Nuno Santos é fácil de compreender. O socialista não quis “alienar” eleitores, criar mais divisões. O que fez na noite eleitoral, porém, é um exemplo clássico de “negação do racismo”, um problema estrutural, em Portugal, defende Miguel Vale de Almeida.

“Negação no sentido da recusa que exista racismo na sociedade portuguesa, que é uma coisa já muito antiga, que vem do tempo do salazarismo e do colonialismo. Que é obviamente um argumento falacioso, capcioso, e é uma forma de não enfrentar um problema que efetivamente existe.”

Ainda antes de conversar com a Renascença, o antropólogo já havia sinalizado a ocultação de Pedro Nuno Santos, num texto, “O desaparecimento mágico do racismo (e não só)”, publicado na plataforma Medium.

Aí, escreveu: “Mal se verificou o sucesso eleitoral da extrema-direita e imediatamente comunicação social, comentadores e partidos — da esquerda à direita — concordaram no seguinte diagnóstico: trata-se de um voto ‘de protesto’, de um voto “antissistema”, de um voto de ‘descontentamento’ com a política.”

No entender de Miguel Vale de Almeida (que teve uma curta passagem pelo Parlamento enquanto deputado do PS), a leitura do voto do Chega apenas como sinónimo de protesto é limitada. Até porque existiam alternativas.

“Se a questão central do voto fosse a sensação de estar marginalizado na distribuição dos meios e dos recursos na nossa sociedade, provavelmente as pessoas votariam num partido igualitarista de esquerda. Se a questão é o efeito de toda esta perceção da corrupção, há partidos que não tiveram nenhum envolvimento em casos de corrupção - que sejam notórios ou graves”, lembra à Renascença.

O antropólogo alerta, por isso, para “uma espécie de paternalismo elitista” nas análises do voto do Chega que “vão acabar por acicatar mais ainda o próprio partido”.

“É como se estivessem a tratar as pessoas como os tais deploráveis de que Hillary Clinton falava. Não, não são deploráveis. São pessoas como você ou como eu. Só moral e eticamente, a meu ver, cometem um erro gigantesco ao darem voz a quem defende aquelas ideias”, diz.

Miguel Vale de Almeida admite até que, quando alguns eleitores do Chega forem inquiridos, podem dizer, claro, que optaram por votar no partido de André Ventura por causa da medida X (corrupção) e não da medida Y (políticas anti-imigração). Todavia, isso não os iliba de responsabilidades.

“Quando se vota num partido não é propriamente um menu em que se escolhe umas coisas e não outras. Está-se a dar poder a quem defende determinadas ideias.”

Também Jorge Vala, psicólogo social e autor do livro “Racismo, Hoje: Portugal em Contexto Europeu” (ed. FFMS, 2021), assume que, entre as várias motivações do eleitorado do Chega, “com certeza” que uma delas será “as posições anti-imigração, racistas e xenófobas, da direção do Chega e sobretudo do seu programa”.

No entanto, o investigador não afasta outras explicações como o “sentimento de frustração”, o “voto de agressão ao PS”. E traz para cima da mesa outro ângulo de interpretação do resultado do Chega (que não exclui o racismo): o conservadorismo da população.

“Portugal, pelas pesquisas que tenho feito, é um país que continua numa larga medida como um país conservador. Digamos que 20 a 30% das pessoas têm posições muito conservadoras no plano político. A sua orientação para a democracia talvez seja em muitas circunstâncias menos forte do que a sua orientação para o autoritarismo”, conta.

No plano cultural, essas pessoas estão “muito ligadas no plano do credo cristão radical, que tem reemergido nos últimos tempos na Igreja”.

“São pessoas que, no plano social, defendem a hierarquia social: cada um tem o seu lugar pré-definido na sociedade, e esse lugar tem estado a ser ameaçado por um conjunto de convulsões sejam elas ideológicas, sejam até pelo bem-estar económico que muitas pessoas têm obtido.”


André Ventura em Belém. Foto: Manuel de Almeida/Lusa
André Ventura em Belém. Foto: Manuel de Almeida/Lusa

Brandos costumes

O racismo em Portugal está longe de ser um problema novo. A imagem de um país de brandos costumes, que fez “uma colonização e descolonização exemplar”, ainda persiste. Tem raízes históricas.

“Entre as pessoas mais engajadas em combater o racismo, existe há muito tempo a perceção que a democracia portuguesa não soube lidar com esta questão. Que continua exatamente no mesmo quadro mental e cultural do luso-tropicalismo, da ideia que não existe racismo, que isto é uma sociedade especial”, diz Miguel Vale de Almeida.

Dados do Inquérito às Condições Origens e Trajetórias da População Residente em Portugal (ICOT), publicado pelo INE ainda em dezembro de 2023, contrariam, ativamente, a narrativa luso-tropicalista.

Segundo o ICOT, mais de 4,9 milhões de pessoas (65,1%) consideram existir discriminação em Portugal e 2,7 milhões (35,9%) já testemunharam esse tipo de situações.

A discriminação, sem surpresa, é sentida acima de tudo por pessoas que se identificam como ciganas (51,3%), negras (44,2%), ou com pertença mista (40,4%).

Para Jorge Vala, em Portugal já há muito tempo “que devíamos ter refletido sobre essa questão, já há mais tempo que deviam ter sido tomadas medidas efetivas para chamar à atenção da população em geral de que este problema existe.”

O psicólogo social aponta responsabilidades ao Governo do PS que criou, em 2021, o primeiro Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação. Uma agenda “extraordinariamente detalhada”, mas sem processos de avaliação e sem um “pacote financeiro atribuído”, que acabou por “morrer”.

Uma das recomendações do Plano Nacional era a recolha de dados étnico-raciais nos Censos – indicação que não foi seguida. Outra era a criação de um Observatório do Racismo e Discriminação – lançado em março de 2023.

À Renascença, Teresa Pizarro Beleza, coordenadora do Observatório do Racismo e Discriminação (ORX), defende que para uma real mudança são precisos “meios humanos” e “meios financeiros”.

“O grau de empenho político sério nestas coisas também se mede pelos orçamentos, como é evidente. E, na verdade, aquilo que o Governo se tem disponibilizado para pôr ao serviço dos objetivos do Plano e concretamente do caso do Observatório são meios muito limitados”, nota.

Em março do ano passado, o Governo, através da Secretaria de Estado da Igualdade, ficou responsável pelo financiamento parcial das atividades do ORX - até um valor de 125 mil euros para o ano de 2023.

Segundo Miguel Vale de Almeida, todas as políticas antirracistas ao nível nacional “são extremamente ténues, extremamente aflitas, muito tímidas, muito baseadas na ideia de um falso universalismo”.

“Há um medo muito grande de tornar visível que a nossa sociedade é composta por vários grupos étnico-raciais. É um medo baseado numa crença republicana - de origem progressista, sem dúvida -, democrática, que é a crença no universalismo. A ideia de que as pessoas devem ser tratadas como entidades neutras. Igualdade perante a lei. Que é um princípio importantíssimo. Só que é um princípio que não está garantido na realidade”, diz.

Contagem de votos Europa e Resto do Mundo das Legislativas 2024. Centro de Congressos de Lisboa. Foto: João Cunha/RR
Contagem de votos Europa e Resto do Mundo das Legislativas 2024. Centro de Congressos de Lisboa. Foto: João Cunha/RR

Quem é o racista?

O imaginário do indivíduo racista é uma das barreiras ao reconhecimento do problema. À exceção de algumas pessoas cuja identidade é construída em torno dessa ideologia – como um neonazi – é sempre complicado dizer quem é o quê sem estereotipar.

Por isso mesmo, Jorge Vala não gosta de falar em pessoas racistas. Prefere falar de “crenças na sociedade, comportamentos de discriminação, que atravessam a sociedade”.

Segundo o psicólogo social, não é preciso procurar muito para encontrar exemplos de cidadãos anódinos com ideias racistas.

“Se nós dermos atenção à literatura e, nomeadamente, aos meios de comunicação, vamos encontrar aí, de forma difusa, não estereotipada, pessoas que partilham por vezes, de forma mais ou menos clara, crenças racistas. De onde se vê que o racista não é um monstro. É uma pessoa comum, que pode estar ao nosso lado, não é alguém boçal, que não tem cultura, que não sabe ler nem escrever, que não tem memória”, diz.

Aliás, “a história ensina-nos que do lado da criação, da difusão de crenças racistas, estiveram sempre intelectuais e cientistas sociais”.

Miguel Vale de Almeida tem a mesma opinião. Pessoas com ideias racistas podem, ao mesmo tempo, ser “extremamente bondosas, em muitas ramos da vida. Serem simpáticas, serem bons pais e boas mães. Serem solidárias. Uma coisa não impede a outra. Não há uma identidade congelada da pessoa racista. Por isso é que as pessoas dizem, com relativa tranquilidade, eu não sou racista”, lembra.

Podem até ser ou ter sido emigrantes.


André Ventura, líder do Chega, na noite eleitoral. Foto: Miguel A. Lopes/Lusa
André Ventura, líder do Chega, na noite eleitoral. Foto: Miguel A. Lopes/Lusa

Votos em contradição

A realidade política não é uma história sem contradições. Se houvesse dúvidas quanto a isso, o resultado do Chega nos círculos dos emigrantes (Europa e Fora da Europa) desfê-las. O partido de André Ventura elegeu dois deputados (um deles, no passado, imigrante ilegal em França) em quatro possíveis.

Seria de esperar que emigrantes portugueses não se identificassem com um partido anti-imigração? Errado.

Jorge Vala não foi apanhado de surpresa. Há mais de duas décadas, durante o estudo “Expressões dos Racismos em Portugal”, do qual foi coautor, o psicólogo social já se apercebera que não existia “uma correlação” entre “o preconceito anti-imigrante e pessoas com um passado emigrante”.

“Esses emigrantes, que já tinham regressado, consideravam-se protótipos do que era um bom emigrante, enquanto aqueles que nós recebíamos eram o protótipo, entre aspas, do mau imigrante”, explica.

O emigrante português é tão capaz de discriminação, de diferenciação como qualquer cidadão que more em Portugal. Os preconceitos de casa leva-os para onde parte.

Nas palavras de Miguel Vale de Almeida, “ninguém é puro”. E a comunidade emigrante não é homogénea.

“Basta pensar na divisão que existe entre emigrantes e expats [expatriados]. É uma divisão de classe, racial, e por aí fora”, diz.

Não é necessário procurar muito, além do mais, para encontrar discriminação mesmo entre imigrantes. O antropólogo recorda o caso da Frente Nacional, em França, e do Vox, em Espanha, partidos anti-imigração da mesma família política do Chega, que têm imigrantes entre os seus representantes.

Ainda no passado 10 de março, Marcus Santos, imigrante brasileiro e negro, foi eleito deputado pelo Chega.

Há imigrantes que “aderem a estes partidos como uma forma de integração, uma forma de garantir um lugar na sociedade, que eles vêm como já garantido, face aos outros que ainda estão a vir. E isso faz com que possa haver um deputado negro no Chega, ou um deputado emigrante na Frente Nacional. Ou que possa haver pessoas que tomam posições contrárias a uma política de igualdade face à sua identidade”, explica.

De acordo com o Inquérito Social Europeu, as crenças anti-imigração em Portugal vinham a diminuir entre 2016 e 2021 – o último ano de que há dados disponíveis. Acontece que, no entretanto, muito mudou. O Chega passou de um grupo parlamentar unipessoal para eleger cinquenta deputados. O número de crimes de ódio em Portugal aumentou 38% de 2022 para 2023.

Não temos informação da última vaga para saber se, dado o papel do Chega, houve mudança. O fantasma do estrangeiro é um fantasma que polui a cabeça de nós todos. Nós precisamos de autoanálise para darmos conta que o fantasma está a enevoar os nossos pensamentos, as nossas reflexões”, diz Jorge Vala.

Chegou a hora de Portugal se deitar no divã?


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