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Graça Franco

Praxe

23 set, 2014 • Graça Franco

Não tenho provas científicas, mas basta-me a evidência sociológica para acreditar que andar com penicos na cabeça dificulta a oxigenação das ideias.

A integração e acolhimento dos mais novos nas universidades pode fazer-se de forma positiva numa série de actividades que cabe à Academia não apenas tolerar cumplicemente (como hoje faz com as praxes), mas activamente estimular.

O que reitores e directores não podem é continuar a fingir que a praxe não lhes diz respeito furtando-se a reflectir sobre que tipo de juventude que querem formar.

São de saudar, este ano, as praxes alternativas como as promovidas por alguns alunos do ISCTE ou a Cria’ctividade em Coimbra. Prova-se que é possível mobilizar os alunos mais velhos para encontrar jogos e actividades que fomentem a entreajuda, a solidariedade, o respeito e o acolhimento dos caloiros, estimulando o que de melhor há em cada um e não o contrário. É possível integrar sem abuso de poder, exploração dos mais frágeis, vexame, humilhação, servilismo e acriticismo. Tudo o que rodeia os habituais rituais praxistas e no fundo resume o que a Universidade deveria abominar e activamente erradicar da sua zona de influência.

O caso Meco (na sua desgraça) teve o mérito de alertar toda a sociedade para o abuso e violência dos rituais de iniciação a que parte da nossa juventude universitária vem estando sujeita ao longo dos últimos anos. Criou-se finalmente uma opinião pública atenta e favorável à mudança. Venha a provar-se, ou não, a relação directa entre as mortes dos jovens a 15 de Dezembro e os rituais praxistas, a verdade é que este caso nos impede de continuar a fazer vista grossa e a fingir que não sabemos.

O Ministério da Educação parece também estar finalmente disposto a actuar, pelo menos combatendo os chamados “excessos” – ou seja, o que se considera praxes “violentas” e/ou “humilhantes”. Vale a pena elogiar a criação do email de recurso, colocado à disposição dos caloiros, para que possam, sem pressões e em segurança, denunciar essas práticas. Pena é que a denúncia só possa ocorrer a coberto deste tipo de instrumentos, não bastando aparentemente a simples garantia de que vivemos num Estado de direito. Mas, adiante.

O facto de, só na primeira semana, terem chegado a esta espécie de linha “SOS – Praxe”, mais de 30 queixas, com 18 delas a seguirem para investigação, junto das entidades académicas visadas, mostra bem a dimensão e a gravidade do fenómeno.

Falta o quê? Falta que a própria universidade acorde. Reitores, directores e professores não podem mais furtar-se à reflexão “politicamente incorrecta” e socialmente “polémica” sobre que juventude quer o nosso ensino superior formar. Uma juventude acrítica? Submissa ao abuso da autoridade, que se deixa dominar pelos mais fortes e se reduz ao mais puro servilismo dos mais velhos? Ou não?

Alunos que assistem a aulas de praxe (para já nem falar do absurdo de existirem docentes que aceitam alinhar neste tipo de brincadeiras…) levados a interiorizar que o que irão ouvir nos próximos anos é tão estúpido, quanto inútil e incompreensível. Pior, caloiros levados a pensar que perante isso a única coisa que se lhes pede e espera é que o decorem e repitam de forma servil e acrítica os pretensos ensinamentos .Se é isso que a comunidade de professores espera dos seus alunos, está tudo dito.

Não se pode fazer nada? Ai pode, pode. Experimente-se acabar com a proibição do uso do traje académico pelos não praxados. Declare-se que esse é um direito de todos os estudantes do ensino superior e espere-se pelo resultado. Talvez se venha a constatar que está na conquista do direito a usar esse sinal exterior de mobilidade social e sucesso individual que radica, pelo menos, uma boa parte da aceitação social da praxe e explica a cúmplice conivência de muitas das famílias dos praxados.

Não tenho provas científicas, mas basta-me a evidência sociológica para acreditar que andar com penicos na cabeça dificulta a oxigenação das ideias, gritar compulsivamente frases humilhantes sobre si próprio, e obscenidades não aumenta as competências linguísticas, e ter o campo de visão limitado ao chão reduz a capacidade de interpretação do mundo.

Além disso, a sujeição a um número excessivo de flexões temo que possa desencadear um temível “esmagamento dos neurónios” dos jovens universitários. Recuso-me a por isso a acreditar que seja isso o que a comunidade académica pretende dos seus jovens.

Conclusão lógica: a praxe não previne e antes estimula o abandono e o insucesso escolar no ensino superior (já de si infelizmente elevado) para já não falar do facto de contribuir activamente para a promoção do alcoolismo precoce (um dos mais graves problemas de saúde pública nacional), com custos acrescidos do SNS no médio e longo prazo. Só não se entende o que falta para acabar com ela ou, no mínimo, para a desincentivar.