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Graça Franco

A tradição já não é o que era

17 set, 2014

Na velha Europa, uma Nação, fora do bloco de Leste, pela força da política e da razão, escolhe madura, civilizada, democrática e pacificamente discutir o direito a recuperar a independência.

A tradição já não é o que era. Basta pensar na imagem de marca da Escócia. O mundo também não. Na próxima semana, quando tivermos digerido os resultados do referendo escocês, o mundo corre o risco de acordar ainda mais diferente. Se ganhar o SIM (como hoje ainda parece ser uma possibilidade), bem nos podemos preparar para o efeito dominó dentro da União Europeia mas, sobretudo, para um imprevisível “efeito borboleta” nos vários equilíbrios mundiais.

Coloquemos de lado a primeira e mais óbvia consequência: o velho Reino Unido, ao abrir mão de um terço do seu território, quase 9% da sua população e riqueza, para já não falar dos 90% das receitas de exploração do petróleo do mar do Norte (estimadas para os próximos quatro anos em quase 60 mil milhões de libras), aceitando pôr em causa a solidez da sua “City” e colocando em risco de enfraquecimento o seu poder global não tem apenas um gesto de loucura magnânima, dá-nos uma lição de civilização.

Na velha Europa, uma Nação, fora do bloco de Leste, pela força da política e da razão, escolhe madura, civilizada, democrática e pacificamente discutir o direito a recuperar a independência. Entre oito séculos de história independente (e muitas vezes conflitual) e três séculos de união marcada por grandes sucessos e pequenos desaires, a Escócia pode optar por tomar em mãos o seu destino e os seus interesses. Esta é a parte boa.

Depois vem o resto. E o resto não é apenas a catástrofe na política interna inglesa. Com os conservadores a verem-lhes colado o anátema de “perdedores da Escócia” (para fúria do primeiro-ministro escocês que não gosta de ver a sua nação reduzida a uma “espécie de propriedade”) e os trabalhistas confrontados com uma dificuldade acrescida de regresso ao poder. Grandes e quase exclusivos beneficiários da meia centena de deputados eleitos pelo voto escocês, a sua partida, pode tornar uma nova maioria uma quase impossibilidade para os homens de Ed Miliband.

Com o mal dos políticos ingleses podemos nós bem. Pior serão as ondas de choque de uma Grã-Bretanha fragilizada na Europa e no Mundo.

Sem o europeísmo escocês, o Reino Unido ficará mais próximo da saída da Europa. Pior, terá também em risco o seu lugar de topo no G7 (o clube das economias mais ricas do Mundo). Basta pensar que a India e o Brasil já fazem fila de espera para o substituir.

Mas há mais: não é certo que se mantenha sequer no seu lugar no conselho permanente de segurança na ONU, tanto mais que a saída da Escócia será um golpe fatal na política de defesa da Grã-Bretanha. Uma Escócia não nuclear (quando é lá que se situam as principais bases e estão os submarinos do reino…) não será apenas mais uma dor de cabeça. É enxaqueca grave.

Se o SIM ganhar a União Europeia arrisca-se, no curto prazo, a perder o Reino Unido e a Escócia (cujo nacionalismo é furiosamente pró-europeu e pró-Bruxelas). Por mais que isso seja um rude golpe para os independentistas o respeito pelos Tratados obrigará sempre a Escócia a sair primeiro para tentar reentrar depois. O risco é ficar anos a bater à porta…

Sem Libra (negada por Londres) e sem Euro (com um processo de adesão a prolongar-se por negociações vagamente absurdas durante anos e anos até se ultrapassar o veto espanhol) a vida da nova Nação não é fácil de adivinhar.

Claro que a Escócia pode sempre arriscar continuar com a libra ou aderir ao Euro por mecanismos “informais” mas o risco associado a essa opção é sempre muito grande. Contudo, o recurso a uma nova moeda não terá garantias maiores. Até os nobéis se dividem sobre o impacto económico para a nova nação independente. Paul Krugman ameaça com uma espécie de falência garantida caso ganhe o SIM, Joseph Stiglitz promete um futuro de prosperidade. Certo é que não vai bastar contar com as reservas de petróleo do Mar do Norte porque elas vão esgotar-se e não pode radicar aí a chave do futuro. No curto prazo os custos são mais certos.

Por último, na União Europeia, não há apenas o risco de perda da Inglaterra sem entrada da Escócia. Em Barcelona há dois milhões que saíram à rua à espera do balão de oxigénio escocês para dizerem adeus à Espanha unida. Os independentistas catalães preparam-se para ir votar em Novembro. Madrid diz que a consulta popular é inconstitucional e não os deixará partir sem luta.

E depois da Catalunha, o país Basco? E para Portugal cuja independência em 1640 só foi possível porque o inimigo estava concentrado em impedir, ao mesmo tempo, a independência catalã, o que nos serve melhor agora? Uma Espanha unida? Ou dividida?

E a Padânia em Itália? A Flandres na Bélgica? A Bavária na Alemanha? Tudo as regiões mais ricas dos três países. Tudo regiões onde os sonhos de independência crescem embalados aqui e ali por um europeísmo de raiz “federalista” que surge, agora, a destempo, quando a Europa se afasta do sonho federal e se perde no labirinto de um directório onde Berlim assume a palavra decisiva.

Juncker pode mudar muita coisa na Comissão Europeia mas não parece talhado para mudar o mundo. E contudo ele muda. Se o SIM ganhar o mundo não será mais aquilo que era. Mas ninguém sabe ao certo o que será nem se será melhor.