Emissão Renascença | Ouvir Online

Graça Franco

Inconseguimos

14 abr, 2014 • Graça Franco

Como foi possível termos chegado aqui em apenas 40 anos? Aqueles 40 anos em que a minha geração recebeu de mão beijada, de um punhado de militares de Abril, o precioso dom da liberdade de expressão.

Que enorme falhanço. Sinto-o pessoalmente. Culpa nossa, culpa minha. Como foi possível termos chegado aqui em apenas 40 anos? Aqueles 40 anos em que a minha geração recebeu de mão beijada, de um punhado de militares de Abril, o precioso dom da liberdade de expressão. Um dom que aparentemente desperdiçamos, não sei se por mau uso dessa própria liberdade ou se, pelo contrário, pelo simples abandono do respectivo exercício. Vergados ao peso do pensamento acrítico e praticamente único, esquecidos de que a liberdade de expressão exige muito mais do que a mera possibilidade de exercício do contraditório.

Que lhe fizemos? Como explicar que na sondagem da Pitagórica que o jornal “i” publica esta segunda-feira não haja mais de 1,2% dos inquiridos a considerar a liberdade de expressão a maior conquista de Abril? Problema deles? Não. Problema nosso. Porque a liberdade se conquista tanto hoje como ontem e não é certo que não se possa perder.

Porque não conseguimos demonstrar que a liberdade de expressão não é mais do que a expressão máxima da própria liberdade? Ser capaz de dar voz aos adversários (tenham eles ou não razão), aí reside a grande superioridade do regime democrático, apesar das suas debilidades e limitações.

Pode ser a igualdade, entre homens e mulheres, como parecem pensar 25,2% dos inquiridos, uma conquista maior? Ou, pior ainda, o Serviço Nacional de Saúde conquista mais relevante (como pensam mais de 37% dos respondentes)?

Imaginam-se os portugueses felizes num país sem ponta de desigualdade entre sexos e saúde generosamente gratuita, mas com o pequeno senão de não se poder falar livremente nem conhecer, o que passa?

Imaginar-se-ão a viver num país próspero, organizado, ordeiro, com pleno emprego e saúde gratuita, mas com esses dois pormenores da existência de uma polícia política ao estilo da PIDE/DGS e uma comissão de exame prévio a mandar para a cadeia “os oposicionistas” e a retalhar noticias e opiniões em livros, filmes e jornais?

Inconseguimos. E é pena que mesmo os que mais medo tinham desse “inconseguimento” lhe estejam claramente  a abrir a porta. O “soft power sagrado” do nosso parlamentarismo foi-se numa neblina que permite hoje aos portugueses dizerem coisas como esta: os políticos da ditadura eram mais sérios que os actuais e tinham mais preparação e capacidade de liderança. E se tiverem razão? Nada a temer não fosse a constatação vir a par do claro desprezo pelo valor associado à própria liberdade.

O perigo resulta apenas desta conclusão: 46% dos portugueses que admiram essa maior seriedade e os 43% dos que prestam jus à tal maior preparação estarão muito provavelmente dispostos a estender a passadeira vermelha a um líder “sério e bem preparado” mesmo que ele tenha esse pequeníssimo senão de se apresentar como ditador. Valha-nos Deus! Como foi isto possível?