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Pedro Leal

Os anos da “troika” e os suspeitos do costume

03 abr, 2014 • Pedro Leal

Sem um sinal claro, pelas reportagens que hoje começamos a emitir, os “suspeitos do costume” não parecem disponíveis para um novo esforço: o de continuarem a aguentar os que seguem a vidinha do costume.

Custa olhar para cima quando se está cansado. E, por vezes, o que custa mais não é o movimento, o esforço físico. É a necessidade de vencer o sentimento de desperdício de tempo; de que, faça o que se fizer, de pouco vale a pena.

Para lá das estatísticas, este é o sentimento comum a muitas pessoas, a cada pessoa afectada pelo Programa de Assistência Financeira que Portugal foi obrigado a adoptar para evitar o desastre – a bancarrota –, em 2011.

Nestes três anos, as vivências negativas sucederam-se a um ritmo por vezes confuso e quase sempre sufocante: o empobrecimento, o desemprego, a emigração forçada, o aumento do fosso entre ricos e pobres, a perda de regalias, o desespero de muitas famílias por não saberem como reagir, como enfrentar a nova realidade.

Na procura da dimensão deste quadro, a Renascença inicia, esta quinta-feira, a publicação de um conjunto de reportagens sobre “Os anos da troika”. São cinco olhares próprios, cuja publicação se vai estender até à data mágica de 17 de Maio. As estatísticas estão lá, mas, mais do que provar uma nova realidade, o objectivo é perceber como se sente Portugal em 2014, no final do que poderá ser a primeira fase de intervenção exterior.

E o filme não é bonito: a luta desesperante de uma avó que procura nos caixotes do lixo a dignidade que pretende dar à vida dos netos, os jovens qualificados empurrados para a emigração, a separação de casais, o adiamento da maternidade… Para todos, a “troika” pouco diz: estão na vida real, longe das discussões políticas, das considerações tácticas dos partidos, longe do centro de decisão. São os “suspeitos do costume”, como no filme “Casablanca”. Em crise, são os primeiros a perderem tudo ou parte do que construíram.

Perante a emergência da situação a que se chegou em 2011, as medidas foram adoptadas a régua e esquadro, ou seja, impôs-se um modelo para três anos e procedeu-se à sua fria aplicação. As reformas não foram pensadas, foram impostas, logo, com muitos danos colaterais, os tais “suspeitos do costume”.

O objectivo, nestas reportagens, não é encontrar um culpado: é perceber como a realidade magoa, frusta e deixa perdida uma geração que já não terá tempo de recuperar, de se relançar, por exemplo, no emprego.

Mas já neste texto interessa perceber quem são os culpados: eles estão no Governo (o que é feito do guião para a reforma de Estado?) e na oposição (que medidas alternativas que não seja negociar prazos e taxas com Bruxelas?).

Alguns estão até na lista dos que agora pedem a reestruturação da dívida (que políticas despesistas adoptaram alguns quando estiveram no poder?). Outros estão nos conselhos de administração dos bancos. Lembram-se do assalto ao BCP? Da politização da CGD? Do BANIF? Temos verdadeira noção do que se está a passar no BES? Tirando os casos de polícia, alguém da alta finança e da política perdeu o seu lugar? Todos estão e continuam em algum lado. Adaptaram-se. Seguem a vidinha do costume com um ajuste no tom do discurso, tal como “O Conde de Abranhos”, de Eça. 

Até Maio, vivemos num quadro de imposição. A partir dessa data temos que fazer escolhas. E aí temos que ser exigentes: castigar eleitoralmente quem o merecer.

E, chegados aqui, faz todo o sentido falar do futuro e recordar os apelos ao entendimento que o Presidente da República lançou no ano passado e que tem repetido até à exaustão. Cavaco Silva tem razão. O entendimento não é um sinal de fraqueza, nem o fim da democracia. Ninguém pede a um partido de oposição que siga a mesma política de um partido do governo e vice-versa. Mas é exigível pedir a uma classe política que se entenda, em termos gerais, sobre que país Portugal será daqui a três, cinco, dez anos. Isto é bom senso.

O entendimento que todos andam a recusar parece esconder, de novo, a táctica de poder que nos trouxe até aqui. Sem um sinal claro, pelas reportagens que hoje começamos a emitir, os “suspeitos do costume” não parecem disponíveis para um novo esforço: o de continuarem a aguentar os que seguem a vidinha do costume.