06 out, 2016 - 20:00 • Marta Grosso com Filipe d'Avillez e José Pedro Frazão
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António Guterres, próximo secretário-geral da ONU, acredita que terá "enormes desafios” pela frente e está consciente da "terrível complexidade dos dramas do mundo moderno".
Capacidade de diálogo, experiência, conhecimento do terreno, diplomacia. São alguns dos atributos reconhecidos a António Guterres. “Ele conhece muito bem os mecanismos das Nações Unidas pelas altas funções que desempenhou até agora e tem um leque de problemas que vão exigir-lhe uma atenção imediata”, afirma à Renascença Adriano Moreira, especialista em Relações Internacionais.
Num mundo onde guerra e terrorismo se confundem, onde as forças que o manipulam são múltiplas e onde o movimento de pessoas atinge proporções históricas, os desafios que se colocam ao novo secretário-geral da ONU não são fáceis nem simples.
Adriano Moreira, Pedro Santana Lopes, António Vitorino, Nuno Rogeiro e outros especialistas elencam os cinco maiores problemas nas mãos de Guterres:
1. REFUGIADOS
O problema das migrações “desafia o conflito entre os deveres humanitários e as preocupações de segurança”, afirma Adriano Moreira. Em 2007, ainda longe do pico da crise de refugiados, Guterres, na qualidade de alto comissário para os refugiados, dizia aos microfones da Renascença que o século XXI seria "o século do povo em movimento".
Segundo a Amnistia Internacional, existem 21 milhões de refugiados no mundo, mas a ONU eleva o número para 60 milhões, incluindo migrantes e deslocados. Mais de 184 mil chegaram à Europa por mar este ano. Mais de três mil desapareceram no mar.
“Espero que o engenheiro Guterres seja capaz de levar o seu conhecimento desta realidade ao investimento a montante, no desenvolvimento dos países de origem destes movimentos. Já vimos como é difícil ou impossível resolver aqui”, considera Pedro Santana Lopes no Fora da Caixa da Renascença.
“O conhecimento e compreensão do problema pelo senhor Guterres, bem como a sua paixão por soluções justas poderá levar os governos a aceitar os refugiados, em vez de os impedirem de entrar”, lê-se num editorial do “New York Times”.
Também o especialista em Relações Internacionais Nuno Rogeiro considera que, “para resolver estes problemas – ou, pelo menos, para colocar as várias partes em diálogo – não há ninguém melhor do que António Guterres”.
“Ele é a pessoa que conhece bem o campos de refugiados de todo o Leste da Europa, a começar pelos dentro do território da Geórgia; é a pessoa que conhece melhor os campos de refugiados na Turquia, que visitou muitas vezes; é a pessoa que melhor conhece os campos de refugiados dentro da Jordânia”, aponta Nuno Rogeiro.
Guterres é, por isso, “no fundo, a pessoa que conhece melhor os sítios onde estão essas pessoas, os sítios para onde querem ir, os sítios donde vieram e as condições em que sobrevivem. É, portanto, o homem certo, no momento certo para o lugar certo”.
2. SÍRIA
Para o antigo comissário europeu António Vitorino, a Síria será, “à cabeça”, a grande prioridade de Guterres.
A guerra dura há mais de cinco anos e já custou centenas de milhares de vidas, provocando ainda uma onda de refugiados que afecta, não só a região como a Europa.
O que começou como um protesto contra o Governo, na altura das “primaveras árabes”, é hoje um conflito de enorme complexidade. De um lado, os rebeldes tentam derrubar o Governo e representam, essencialmente, a população maioritária sunita, mas entre eles há também forças mais seculares. A predominância é de grupos fundamentalistas, com ligações à Al-Qaeda.
Do outro lado estão as forças leais ao Governo, que embora reúnam também muitos sunitas, representam as minorias religiosas (como cristãos e alauitas, sendo estes últimos um ramo do islão xiita, que domina os aparelhos do Estado há décadas).
Há ainda o Estado Islâmico, que ocupa uma parte significativa do território e que é combatido tanto pelo regime como pelos outros grupos rebeldes. Além disso, há também os territórios curdos, que incluem bastantes cristãos e que começaram por se opor ao Governo e reivindicar autonomia, mas que agora estão exclusivamente concentrados no combate ao Estado Islâmico.
A tudo isto acresce um forte envolvimento internacional, não só de combatentes como de forças organizadas. Iraque, Hezbollah e milícias do Afeganistão apoiam o regime, bem como a Rússia, através, sobretudo, de ataques aéreos. Do lado rebelde, além de vários militantes sunitas radicais, há o apoio logístico de alguns governos ocidentais, como Estados Unidos e França, mas também da Turquia, que recentemente se envolveu militarmente nas regiões fronteiriças. O financiamento está cargo dos países do Golfo.
Nuno Rogeiro considera, por isso, a Síria um território “que já foi um país, mas que hoje é essencialmente um conjunto de cinco ou seis grandes áreas de influência, onde um movimento de pessoas acompanha a não resolução do conflito”.
Ao nível global, o conflito veio acentuar o braço-de-ferro entre Rússia e Estados Unidos, depois de outras crises, como a da Crimeia e da guerra na Ucrânia.
3. TERRORISMO
As ameaças terroristas são múltiplas e fragmentadas. “Não sabemos onde estão os líderes” e não lhes conhecemos o rosto, destaca Ângelo Correia, presidente da Câmara de Comércio Luso-Árabe.
Por isso, diz, o problema do terrorismo “não é análogo ao que temos nos conflitos internacionais convencionais, uma vez que o diálogo não é entre Estados nem pessoas racionais”.
A Síria é berço do autodenominado Estado Islâmico, uma organização jihadista islamita que tem espalhado o terror na Europa e que desde 2014 se proclamou um califado (uma forma islâmica monárquica de governo). Não obteve qualquer reconhecimento por parte da comunidade internacional.
O Estado Islâmico quer afirmar a autoridade religiosa sobre os muçulmanos de todo o mundo e aspira tomar o controlo de todas as regiões de maioria islâmica, desde logo Jordânia, Israel, Palestina, Líbano.
No seu formato original, era apoiado por várias organizações terroristas sunitas e pela Al-Qaeda no Iraque.
Admitindo que os poderes do secretário-geral da ONU são limitados, o “New York Times” aposta na “influência diplomática” de António Guterres para, num mundo em que os grupos terroristas e os movimentos de revolta transpõem as fronteiras nacionais, liderar uma organização composta por 193 países membros.
4. GUERRAS NÃO RESOLVIDAS
São chamados os “conflitos congelados” – a designação é dada pela Rússia e assumida internacionalmente.
É “uma espécie de um conceito pós-moderno”, diz Nuno Rogeiro, enunciando alguns deles: “temos conflitos congelados à portas da Moldávia, na Geórgia (à volta da Abecásia), na Ucrânia (em Donetsk e em Lugansk)”.
“Todos estes conflitos congelados são, no fundo, guerras que estão paradas, que se traduziram na alienação de uma parte de um território em que não há um estatuto internacional novo para os territórios ocupados e que provocaram milhares de deslocados”, explica à Renascença.
Na opinião de António Vitorino, expressa no Fora da Caixa especial sobre a eleição de Guterres, o conflito na Ucrânia “é obviamente um dos factores de perturbação da paz no continente europeu”, além de intensificador da tensão entre Washington e Moscovo, pelo que espera que a capacidade de diálogo do ex-primeiro-ministro português “permita ultrapassar as sequelas” do conflito entre os dois grandes.
5. REFORMA DA ONU
No meio de um mundo assim conturbado, com tantas questões humanitárias por resolver, a reforma da organização não deverá ser a prioridade do novo secretário-geral das Nações Unidas.
Não deixa, contudo, de ser um tema importante, dado que uma organização mais ágil e eficaz terá um maior impacto na resolução dos conflitos, além de, como advogam alguns, cumprir melhor os princípios da Carta que a sustenta.
Nuno Rogeiro considera que existem três reformas dentro da reforma geral:
Neste último ponto, António Vitorino considera que António Guterres poderá conseguir “reconstruir um certo clima de diálogo entre os membros permanentes do Conselho de Segurança, especialmente entre a Rússia e os Estados Unidos”.
Adriano Moreira, por seu lado, diz ter esperança de que Guterres – que “vai ser um bom secretário-geral” – “ajude a renovar a presença das Nações Unidas, que de vez em quando se mostra como se estivesse em pousio”.
“Ele vai, certamente, reanimar essa intervenção que dá execução a um princípio fundamental da Carta e que tem sido esquecido: que o dever da ONU é servir o mundo, considerado um mundo único”, afirma.
“Nós, os povos das nações unidas... Unidos para um mundo melhor”, diz o documento.
O “New York Times” cita o embaixador do Reino Unido nas Nações Unidas, Matthew Rycroft, para considerar que Guterres poderá ser um secretário-geral “capaz de providenciar autoridade moral e poder de união numa altura em que o mundo está dividido por vários problemas”.
E acrescenta: “Se os membros do Conselho de Segurança permitirem, Guterres poderá conseguir restaurar a missão e reputação de uma instituição internacional que ainda tenta encontrar o seu papel num mundo complicado e perigoso”.
As expectativas sobre António Guterres são elevadas. É, contudo, importante sublinhar que o secretário-geral das Nações Unidas não tem poderes especiais nem uma varinha de condão. Não é “o feiticeiro de Oz”, como disse Kofi Annan (secretário-geral entre 1997 e 2007) numa entrevista a Nuno Rogeiro.
António Guterres será o nono secretário-geral da Organização das Nações Unidas, sucedendo no cargo ao sul-coreano Ban Ki-moon.