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Maria recusava ir à escola "porque lhe chamavam gorda"

11 dez, 2014 • André Rodrigues

Em Portugal, a obesidade infantil afecta uma em cada três crianças dos dois aos 12 anos. Especialistas consideram que quanto mais precoce for a abordagem ao problema, menores as consequências terá na saúde.

Maria recusava ir à escola "porque lhe chamavam gorda"
Primeiro, a resistência para falar no problema da filha. Depois da primeira pergunta, os desabafos. A começar pelo que Maria, de 11 anos de idade, disse aos pais quando sentiu a rejeição dos colegas na escola: "Ela não queria ir à escola porque os colegas passavam a vida a fazer troça por ela ser gorda. É muito triste, mas nestas idades os meninos são muito cruéis". Foi nessa altura, há pouco mais de um ano e meio, que Carla Barbosa decidiu inscrever a filha na consulta de obesidade infantil do Hospital de São João, no Porto.

Tudo começou quando Maria foi, progressivamente, abandonando a prática física extra-escolar. A mãe conta que "ela andava na natação, andava no karaté e no hip-hop" e alimentava-se proporcionalmente."Além do pequeno-almoço, lanchava antes do almoço, novamente a meio da tarde, mais uma vez ao chegar a casa e jantava com imenso apetite, sobretudo depois das aulas de natação".

Mas depois a vida tornou-se mais sedentária. E a criança ficou apenas com as aulas de educação física na escola. O peso começou a aumentar e o médico de família foi claro: "Ou a Maria crescia dez centímetros ou tinha de perder dez quilos".

Reeducação alimentar
É um trabalho em progresso. E com resultados já visíveis. Se no início "houve coisas que custou abandonar", a verdade é que a lista do supermercado teve de levar cortes e acrescentos. "Cortes nas bolachas de chocolate, nos iogurtes de stracciatella, nos iogurtes de pedaços". Tudo isso trocado por "mais verduras" e muito menos idas aos restaurantes das cadeias de comida rápida.

Toda a família aderiu ao plano. Por necessidade, por solidariedade. Porque só assim daria certo.

Carla reconhece que "dantes, tudo o que era verdura era apartado do meu prato". A filha era igual. "Mas eu sou a mãe. Tenho de dar o exemplo à minha filha e fiz-lhe ver que valia a pena o sacrifício" para, no fim, ter uma vida saudável e para que cada ida ao espelho não fosse um pesadelo.

António Guerra, coordenador da Unidade de Nutrição Pediátrica do Hospital de São João diz que é tudo uma questão de educar hábitos. Dito assim parece fácil. "Mas não é", reconhece este especialista. "Digo muitas vezes aos pais que é preciso passar as mensagens correctas às crianças, desde os primeiros anos de vida". E repeti-las vezes sem conta, "sempre como se fosse a primeira vez".

O problema é que "as famílias não têm paciência". Desde logo para enfrentar a natural rejeição dos novos alimentos que se introduzem na dieta das crianças desde os primeiros anos. Carla Vasconcelos, nutricionista do Hospital de São João, reconhece que os produtos hortícolas e a fruta são vítimas do preconceito de que "poucas ou quase nenhumas crianças vão gostar". Mas a recusa faz parte do processo.

"Na maior parte dos casos, a família opta por não insistir porque o menino ou a menina não querem e, como isso altera todo o ambiente da refeição, mais vale nem sequer oferecer". A consequência? "Nem os pais, nem a criança comem verduras". É um ciclo vicioso que, na opinião de António Guerra, "é ainda mais difícil de combater quando os pais também não receberam essa cultura durante o seu crescimento" e provêm de meios familiares onde a obesidade infantil é desvalorizada.

"Muitos pais e avós acham até engraçado", diz Carla Vasconcelos. "O excesso de peso e, nos piores casos, a obesidade das crianças é encarada como algo normal no processo de crescimento da criança", conclui.

Avós facilitam infracções alimentares
Céu Espinheira, responsável pela consulta de obesidade do Hospital de São João, atribui boa parte do problema a um clima propício aos desvios alimentares potenciados pelos avós. Aplica-se na totalidade a máxima de que "os pais educam e os avós estragam" e, no caso dos erros alimentares, "são a forma dos próprios avós se compensarem pela ausência dos netos", admite esta especialista.

Todas as semanas há novos casos e, por ano, chegam à consulta de obesidade "entre 900 e 1.000 crianças", conta Céu Espinheira. E o número não tem parado de aumentar.

Se isso traduz um aumento significativo desta patologia, "é algo que só um estudo mais apurado seria capaz de determinar". O certo é que muitos dos casos que chegam ao hospital já tiveram uma ou mais abordagens anteriores que não resultaram. E, não raras vezes, ocorrem quadros clínicos graves como, por exemplo, "crianças de 16/17 anos com diabetes do tipo 2, de miúdos de 12/13 anos resistentes à insulina ou com complicações hepáticas", adverte.

"Hoje não porque está chover". "Amanhã não porque faz frio". "Agora não porque estou ao computador". "Depois também não porque dá futebol na televisão". E tantas outras desculpas justificam o sedentarismo das crianças e adolescentes. Tantas quantas a criatividade possibilita e a conivência dos pais facilita.

"É mais um ciclo infernal", alerta António Guerra. "Mas quando pais e filhos me aparecem aqui na consulta com esses argumentos, digo-lhes logo que, quando faz frio, há sempre a possibilidade de saltar à corda no meio da sala: meia hora já era muito bom".