Manuel António Pina

"Empenhar-se ao máximo, sabendo que é irrelevante. É essa a grandeza do ser humano"

19 out, 2012 • Filipe d’Avillez

Morreu esta sexta-feira o escritor e poeta Manuel António Pina, o ateu a quem a fé despertava a "sensação que têm os amputados que sentem a perna que já não têm" e para quem fazer poesia em tempos de "troika" era obrigatório.

"Empenhar-se ao máximo, sabendo que é irrelevante. É essa a grandeza do ser humano"
Este excerto de um documentário de Ricardo Espírito Santo revela o que a escrita representava para Manuel António Pina. O escritor e jornalista dizia que "mais do que respostas, a escrita são interrogações" e que todos os poetas que leu estavam "atravessados" na sua poesia. Vencedor do Prémio Camões em 2011, Manuel António Pina morreu vítima de doença prolongada, no Porto. Tinha 68 anos.
Manuel António Pina não era um batoteiro. E sabia olhar em volta.

"Uma pessoa, nestas circunstâncias, pergunta-se a si mesmo: merecerei isto? Terei feito batota, como diz o Nietzsche? Custa-me dizer isto, mas olho em volta e acho que há pessoas que, provavelmente, mereciam muito mais do que eu." Manuel António Pina tinha acabado de vencer o Prémio Camões, em 2011, e descrevia então à Renascença a perplexidade que sentia.

Depois de o júri o ter descrito como "inventivo e criativo", disse que "gostava de ser menos inventivo e mais criativo, porque a criação é uma espécie da nossa proximidade com Deus, enquanto a invenção é arrumar os elementos que temos de uma maneira diferente". A propósito da fé, e ao comentar um milagre ocorrido no filme "A Palavra", de Dryer, descreveu como sentia o que não tinha.

"É curioso que eu que não tenha fé nenhuma, mas, quando vejo coisas daquelas, sinto uma espécie de melancolia. É a sensação que têm os amputados que sentem a perna que já não têm", explicou numa entrevista ao jornal "i".

Numa outra entrevista, ao jornal "Público", contou que pensou ser padre, acima de tudo porque lhe atraía a santidade. "Queria ser bom até ao limite, ao extremo. Na Sertã, vivia num extremo da vila e a escola era noutro extremo; vinha a pé para a escola e aproveitava para rezar todo o caminho. Era investir na minha santidade."

Levou a vida a escrever. Para crianças e para adultos, em jornais e em livros, poesia e ficção, crónica e até teatro. Sobressaía em várias alturas um amor pela beleza, que considera ser "o rosto mais jubiloso da verdade", mas também um grande sentido de humor, sobretudo nas entrevistas.

Contava com a ajuda da sua mulher para não se levar demasiado a sério, como explicou ao jornal "i" a propósito de uma altura em que foi condecorado pelo então Presidente Jorge Sampaio. Manuel António Pina ponderou recusar "o penduricalho".

"A minha mulher é fantástica. Deve ser a única pessoa que nunca escreveu um poema na vida (…) e, apesar de não gostar de poesia, faz-me uma espécie de edição. E sobre eu não querer aceitar a condecoração, disse-me 'lá estás tu a pôr-te em bicos dos pés'. E tinha razão. No dia aprazado, Sampaio pôs-me o penduricalho e eu agradeci. E ele disse-me assim, com aquela cara severa que o homem tem, 'não me agradeça a mim, agradeça ao Estado'. E eu disse-lhe 'ó senhor Presidente, mas como não tenho o Estado à mão, agradeço-lhe a si'."

Na mesma entrevista ao "i", falou de um outro amor da sua vida: o jornalismo. "A grande dignidade da vida e do jornalismo está em ter a consciência plena de que aquilo acaba a embrulhar peixe, mas fazê-lo o melhor possível em cada momento. Fazer o mais honesto, empenhar-se ao máximo, sabendo que é completamente irrelevante - é essa a grandeza do ser humano."

Ainda ao "i", e depois de questionado se era possível fazer poesia nos tempos da troika, explicou a urgência de fazê-lo. "Acho que se calhar até é obrigatório."

Viveu longos anos no Porto, onde se sentia em casa. "O Porto assenta-me perfeitamente. Provavelmente é aqui que vou morrer e hei-de ficar a fazer parte da cidade fisicamente", disse ao site "Porto24".

Manuel António Pina morreu esta sexta-feira. No Porto.

"A morte e a vida morrem
E sob a sua eternidade fica
Só a memória do esquecimento de tudo;
Também o silêncio de aquele que fala se calará"