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Síria. "Melhor ditador a prazo que califa sem termo?"

19 mar, 2015 • José Bastos

A frase encerra “A Síria em pedaços”, o mais recente livro de Bernardo Pires de Lima. Em entrevista à Renascença, o autor analisa o conflito e o modo como se passa da iminência de uma intervenção para um quadro em que Assad é um mal menor.

Síria. "Melhor ditador a prazo que califa sem termo?"
"Síria em Pedaços" é o novo livro de Bernardo Pires de Lima, que reúne quase duas centenas de crónicas que o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa escreveu no Diário de Notícias desde o início do conflito na Síria, em 2011. O livro, segundo o autor, é uma "fotografia de instantes" de um conflito que é já um "fardo internacional".

Bernardo Pires de Lima sustenta que o Presidente sírio, Bashar al-Assad, "é parte da solução”, como reconheceu o secretário de Estado norte-americano, no fim-de semana. O investigador do IPRI defende, em "A Síria em pedaços", o seu mais recente livro, editado pela Esfera dos Livros e a apresentar esta quinta-feira, que "no tabuleiro sírio se cruzam todas as peças do xadrez internacional".

Em entrevista à Renascença, Bernardo Pires de Lima critica o "simplismo" da análise ocidental que a realidade acaba por contrariar.

John Kerry admitiu que não há solução sem Assad. Da forma como Washinton geriu, em 2013, a questão do arsenal químico, era claro que este recuo iria surgir?
Sim. Eu exponho esse cenário em grande parte do livro. Era um epílogo inevitável: tornar Assad parte da solução que, entretanto, se transformou em prioritária. A solução já não é mudar o regime para ter uma oposição pouco representativa, mas sim encurralar o autodenominado Estado Islâmico (ISIS) entre a Síria e o Iraque. Desse ponto de vista, apesar de tudo, se Damasco, e toda a orla ocidental do país não está tomada pelo ISIS, isso deve-se às forças armadas do presidente Assad. Evidentemente, também ao Hezbollah e ao apoio do Irão.

A guerra na Síria, o Estado Islâmico a emergir assim... Isto resulta de o Ocidente não ter percebido esta realidade atomizada e fragmentada?
Acho que sim. A leitura começa ser recorrente nas observações ocidentais sobre a região. Para não recuar mais, começou no Iraque, num pós-guerra que desfragmentou um país interétnico com sectarismo interno, passou pela Líbia, num pós-intervenção desastroso, e, depois, paralelamente, pela Síria. Há um certo idealismo ocidental face a estas realidades: olhar para derrube de ditaduras e a sua substituição por instituições democráticas. Ora, o que se destapa pelo fim, do que pode ser considerado o "institucionalismo", é, em muitos casos, um brutal tribalismo.

O recuo de Kerry é reconhecer que não se derrota o Estado Islâmico apenas com a estratégia aérea? Que são necessárias "botas no terreno", iranianos no Iraque e homens de Assad na Síria?
O livro passa também pela fraqueza do que é uma estratégia exclusivamente aérea. É evidente que os Estados Unidos não querem regressar a um terreno de onde retiraram. É promessa eleitoral de Obama. Em final de mandato, Obama não quer que a Síria seja para si o que o Iraque foi para George W. Bush. É prudente e sensato.

Mas a retracção de Obama tem um preço: a interpretação que os países da região fazem dessa aparente fraqueza. Desde logo, o Irão. O que está a acontecer é que, de forma explicita ou não, os Estados Unidos estão, no Iraque e na Síria, a estender uma passadeira ao Irão.

O Irão é hoje, no terreno, parte da solução anti-ISIS. É um factor que gera tensão com Israel - viu-se nas eleições desta semana - e na relação dos Estados Unidos com a Arábia Saudita.

Jorge Sampaio escreve, no prefácio do seu livro, que na Síria "o que é nem sempre parece e o que parece nem sempre é". Assim se explica também a tragédia humanitária?
Essa e outras razões. A complexidade daqueles países é tal que as bolhas informativas em que estamos envolvidos, na Europa e nos Estados Unidos, no sentido de tratamento dos dados que nos chegam de diversas fontes, não é de todo suficiente para conhecer, com rigor, a realidade. Já temos casos suficientemente graves de desconhecimento e de intervenção na realidade, mesmo depois de lá chegar.

É o maniqueísmo de uma análise simplificada?
Sim, mas não só. O Ocidente vive, talvez na ressaca de 89/91, num excessivo optimismo face a si mesmo. Aquele triunfalismo acabou por ser uma espécie de grande bebedeira colectiva que resultou da democratização, com sucesso, do leste europeu. A formula única do "teve sucesso aqui, terá noutras paragens" não tem um determinismo lógico. Antes obedece a diversas forças de bloqueio. O que se vê, sobretudo no pós-11 de Setembro, no Iraque, Afeganistão é uma dinâmica não uniforme, não exportável, pelo menos, nos parâmetros que se admitiam.
 
O que diz é que a Primavera Árabe - com excepção da Tunísia – se moveu no sentido oposto às expectativas ocidentais...
Completamente. Uma das teses deste livro é exactamente essa. A Primavera Árabe, na minha opinião, nunca existiu.

Mas Damasco não foi Tripoli porquê? 
Damasco não foi Tripoli porque é o grande entroncamento de interesses divergentes. A Líbia, apesar de tudo, num determinado momento, conseguiu atrair uma interessada comunidade internacional. Por isso é que também discuto no livro o conceito de comunidade internacional "lato sensu". Só é uma comunidade de acordo com determinado "timing" e num quadro de convergência de interesses. A Líbia conseguiu atrair esses interesses, houve uma resolução no Conselho de Segurança da ONU para evitar uma catástrofe humanitária em Benghazi, mas o extrapolado da resolução - derrubar o regime - fez com que a Rússia e a China nunca mais aprovassem uma resolução sobre a Síria. Não é possível ler estes casos de forma isolada.

Outra tese do livro é a de que no tabuleiro sírio se cruzam todas as peças do xadrez internacional?
Cruzam-se todas as peças. Todas. Todas com diversos graus de protagonismo e capacidade de intervenção. Por exemplo, a capacidade europeia de intervenção é limitada, o que não significa que o problema não seja europeu. Como vemos pelo jihadismo, alimentado na plataforma síria - e também por toda a orla mediterrânea de que a Síria faz parte -, a entrecruzar problemas, por exemplo, de exploração de gás, com Chipre, Grécia, Líbano e Israel, passível de ditar muita turbulência.

A Síria é, então, o elemento centrifugador deste vórtice que sacode o grande Médio Oriente de Casablanca a Cabul?
Não diria Casablanca. Considero Marrocos um caso de relativa estabilidade, mas sim há aí um grande arco geográfico grande. O livro chama-se "Síria em pedaços" por ter o epicentro numa Síria estilhaçada e porque, como compila crónicas, quase duzentas, é contado pedaço a pedaço. A crónica não é mais que um instante fotográfico, num determinado momento. O leitor encontra o resultado de uma "grande angular" dos últimos quatro anos com "fotografias", praticamente diárias, do que foi acontecendo no Egipto, na Argélia, no Iémen, na Síria e no Iraque.

Num certo sentido estes quatro anos foram tudo e o seu contrário. O livro monta o puzzle?
Tento coser as crónicas num puzzle. Obedece a um encadeamento lógico/temporal, embora as crónicas não tenham necessariamente de estar alinhadas em sequência de publicação. Mas todas resultam dos textos publicados no "Diário de Notícias". Não reescrevi a história. São as minhas interpretações naqueles momentos particulares.

O Ocidente baixou a guarda quanto ao Estado Islâmico depois da decapitação da Al Qaeda?
Talvez não um "baixar a guarda", mas houve uma negligência interpretativa. Pensou-se que o ISIS fosse, mais ou menos, o que a Al Qaeda tinha sido. O ISIS não é isso. São duas organizações diferentes para atingir distintos objectivos. Nesse sentido, o tempo correu a favor da implantação do ISIS.

E como se passa da iminência de uma intervenção externa em Agosto de 2013 para Assad como um mal menor em Março de 2015? "Mais vale um ditador a prazo que um califa sem termo?"
Essa é a última frase do livro. Há várias condicionantes. Da administração Obama houve prudência - que defendi na altura - ao não intervir, porque havia casos de tremendo insucesso a fazer com que a ponderação fosse levada ao extremo: Iraque, Líbia, Afeganistão. Obama não precisava de um novo Iraque na Síria. A verdade é que já tinha o verdadeiro Iraque nas mãos. Depois, as oposições sírias não davam confiança para substituir o regime de Assad. Mais tarde, o ISIS acabou por tornar prioritária a frente actual de combate ao terrorismo.
 
Esta entrevista está disponível em multiplataformas e é sua a frase “a Primavera Árabe não foi o que o Ocidente queria, nem o Facebook ou o Twitter colaboraram. Até contribuíram para distorcer percepções” porque só 20% dos egípcios ou tunisinos tinham acesso à rede. Agora, temos essa contradição da "jhad 3.0" do Estado Islâmico, a usar e abusar da mais moderna tecnologia para facilitar o regresso à idade das trevas. Não será contraditório?
É um pouco isso. Nós, no Ocidente, simplificamos as realidades. Lá porque há um circuito "underground" à volta do Facebook ou do Twitter, à volta de gente nova, sensível aos nossos conceitos democráticos e liberais, achamos que a revolução é exactamente o que essa gente quer.
 
O Egipto, expondo os limites das redes sociais, provou que não é assim. A Praça Tahrir não passou de um grande intervalo revolucionário. Tudo a seguir demostrou como as redes sociais podem vir a ser usadas a favor de movimentos contra-revolucionários, movimentos terroristas e manipuladores de fenómenos sociais e religiosos. Desse ponto de vista, ficou provado que também é excessiva a crença ocidental nas nossas ferramentas comunicacionais. Acreditamos serem as ferramentas necessárias para o resto do mundo, sendo que o resto do mundo absorve-as e usa-as a seu preceito e não como gostaríamos.
 
Questiono as interpretações "ocidentalistas". Isto leva-me a outra grande conclusão: vivemos numa era de informação avassaladora e não a sabemos digerir. Não sabemos, sobretudo, pensar essa informação num plano político e estratégico. Na Europa e nos Estados Unidos a falta de pensamento estratégico leva a que haja más decisões, a decisões fora de tempo, a escassa ligação nestes assuntos entre a sociedade, as universidades, os media e, do outro lado, o poder político. Deste quadro, apanhamos fragmentos e, depois, tentamos enquadrar uma explicação, colando-os. No final, a realidade trata de desmembrar as nossas explicações simplistas.