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Flauta pastoril mirandesa mais versátil

27 mar, 2014 • Olímpia Mairos

Artesãos e etnomusicólogos do Planalto Mirandês querem "padronizar" a flauta pastoril e o tamboril, dois instrumentos musicais que fazem parte da tradição regional. É uma forma de preservar uma arte musical secular ligada à pastorícia transmontana e dar nova vitalidade aos instrumentistas.

Está em marcha o processo de “padronização” da flauta pastoril e do tamboril, para que os dois instrumentos musicais, integrantes da tradição e das tradições das terras de Miranda, possam ser tocados por vários tamborileiros em uníssono.

A iniciativa foi lançada por um grupo de instrumentistas, artesãos e etnomusicólogos da região do Planalto Mirandês.
 
“O processo vai permitir que um conjunto de tamborileiros consiga tocar estes instrumentos em grupo, criando assim uma única unidade melódica”, explica Paulo Meirinhos, do grupo de música tradicional Galandum Galundaina.

“Desta forma, os tocadores utilizarão o mesmo modelo de flauta com a mesma afinação, o que não tem acontecido ao longo dos tempos”, acrescenta.

O processo de “padronização” dos instrumentos vai permitir a sua divulgação e, ao mesmo tempo, a sua utilização por novos músicos. É também uma maneira de preservar uma arte musical secular ligada à pastorícia transmontana.

“Temos a convicção que este conjunto de instrumentos não vai sair descaracterizado; antes pelo contrário, vai dar uma nova vitalidade aos instrumentistas que queiram praticar esta arte musical”, frisa o músico.

A mesma convicção é manifestada por Mário Correia, director do centro de música tradicional Sons da Terra.

“O importante é que o processo de padronização respeite a 'tímbrica' mirandesa e a sua identidade e, ao mesmo tempo, que a opção da escolha da flauta pastoril não seja apenas pela 'estética' da mirandesa, mas de um modelo reconhecido por todos os instrumentistas”, defende o especialista.

Embaixadores da cultura musical
O abandono da pastorícia e a melhoria das condições económicas das gentes da terra, levaram vários tamborileiros a adquirir outros instrumentos de sopro mais elaborados, como é caso da gaita-de-foles, e a deixar para trás a rudimentar flauta de três orifícios.

Mas há quem teime em manter as tradições e se orgulhe da arte. Encontramos três “exímios executantes” nas aldeias de Constantim e Freixiosa, no concelho de Miranda da Douro: Aureliano Ribeiro, de 76 anos, Ângelo Arribas, de 78, e Célio Pires, de 38, conhecidos como os guardiães da sabedoria popular no que concerne à mestria de tocar flauta pastoril e tamboril por terras raianas do planalto mirandês.

Deslocam-se um pouco por todo país, pela região, e até pelo estrangeiro, para dar a conhecer estes instrumentos.

“Como tamborileiro, já percorri os quatro cantos do mundo passando pela Índia, Macau, Marrocos, Brasil, França e Bahrein “, diz com orgulho Ângelo Arribas, frisando que conhece Portugal de “lés-a-lés”.

Aureliano Ribeiro, considerado um mestre nestas melodias, conta que desde muito cedo começou a tocar flauta pastoril, incentivado pela família, que lhe incutiu o gosto pelo cancioneiro popular mirandês.

Também Célio Pires, o mais novo tamborileiro, aprendeu a arte muito cedo. “Sempre gostei daquele som límpido da flauta das alvoradas e na ronda e foi mesmo primeiro instrumento que comecei a tocar”.

“Dois em um”
Desengane-se quem pensa que é fácil tocar flauta e tamboril. “A flauta é um instrumento bastante complicado, uma vez que só tem três orifícios de digitação”, refere Célio Pires, frisando ainda que “não é fácil um músico conseguir tocar o tamboril e a flauta ao mesmo tempo”.

“Temos que fazer o ritmo com a mão direita e tocar a flauta com a esquerda, isto se formos destros. Os canhotos têm que fazer ao contrário”, acrescenta, salientando que “da execução conjunta dos dois instrumentos resulta um instrumental polifónico muito interessante”, produzindo uma “sonoridade única”, dividida entre a parte rítmica (tamboril) e a parte melódica (flauta).

Apesar de rudimentares, flauta e tamboril, requerem “prática e conhecimentos”, e nem todos os instrumentistas os conseguem executar de forma “coordenada”.

Célio Pires sente nos ombros o peso da responsabilidade em dar continuidade a esta arte, uma vez que, para além de ser considerado pelos seus pares “como um brilhante executante”, é um construtor de instrumentos de “excelência”.

A tradição era a de estes músicos dividirem a sua actividade musical em duas partes. Durante o ciclo pastoril tocavam apenas a flauta, por ser um instrumento melodioso que não assustava o gado. Num ambiente mais festivo, à flauta era associado o tamboril, que provocava um ritmo mais intenso e alegre, permitindo danças de roda, ou a exibição dos tradicionais pauliteiros mirandeses.