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O gosto pelo que pode haver de verdadeiro

11 dez, 2013 • Matilde Torres Pereira

Manoel de Oliveira fez 105 anos esta quarta-feira. "O que me falta fazer na vida é o resto dos meus filmes."

O gosto pelo que pode haver de verdadeiro

O actor Luís Miguel Cintra chama-lhe "um caso raro". O neto e também actor Ricardo Trêpa diz que "hoje ele já é eterno". Aos 105 anos, Manoel de Oliveira continua a realizar filmes, a dar entrevistas, a estar presente no mundo. 

Manoel de Oliveira nasceu a 11 de Dezembro de 1908, no Porto, filho do primeiro fabricante de lâmpadas em Portugal. Os primeiros passos no cinema foram dados a representar no filme "Fátima Milagrosa", de Rino Lupo. Só aos 23 anos pega na câmara para rodar "Douro, Faina Fluvial", uma curta-metragem documental sobre a vida nas margens do rio nortenho. Foi mal recebido, tal como "Aniki-Bobó", o seu primeiro filme de ficção, estreado em 1942.

"Passou muitas dificuldades na sua vida para poder continuar a filmar. Passou uma década sem poder filmar e, aos 70 anos, reinventou-se e renasceu e continuou a prosperar no cinema", aponta um dos netos, Ricardo Trêpa.

A grande conquista junto do público só chegou depois de "O Acto da Primavera", em 1962, ano em que foi detido pela PIDE numa sessão pública de apresentação do filme, no Porto. "De repente, vou ao cinema e vejo um filme que começa com umas árvores, uns pastores no campo, e depois aparece uma coisa teatralíssima, aquela representação da Paixão de Cristo pelos camponeses, e tudo a fazer imenso sentido e com um gosto pelo que pode haver de verdadeiro, numa representação absolutamente falsa", lembra Luís Miguel Cintra, que trabalhou com Manoel de Oliveira em quase duas dezenas de filmes.

"É como se fosse o próprio teatro da fé, por um lado, e por outro também do excesso, da generosidade dos corações, das atitudes extremas…Fiquei ali completamente preso àquilo", confessa Luís Miguel Cintra. "O Acto da Primavera" acabou por merecer o Grande Prémio do Festival de Cinema de Siena, em Itália, em 1964. Um ano depois, a Cinemateca Francesa rendeu uma homenagem a Manoel de Oliveira com uma retrospectiva.

Como o Manoel gosta
Anos mais tarde, o neto Ricardo Trêpa ofereceu-se para ajudar o avô numa rodagem em Sevilha e aí nasceu uma colaboração que dura até hoje. "Começou à mesa, num almoço, quando eu ainda era 'teenager', e ouvi o meu avô em conversa a dizer que tinha que ir para  Sevilha. Imediatamente as minhas antenas levantaram, fiquei logo entusiasmadíssimo e perguntei: 'Ó avô, também posso ir?", conta Ricardo Trêpa.

No filme "O Quinto Império - Ontem Como Hoje", de 2004, foi a insistência do avô que permitiu ao neto representar o papel de El Rei D. Sebastião. "Tive a grande honra de o poder interpretar à confiança e à tenacidade do meu avô, que contra tudo e contra todos na altura exigiu que fosse eu. Aprende-se muito a representar, a lidar com muita coisa que achamos que não existe cá dentro mas que cá está e que depois temos de saber utilizar. São personagens muito difíceis e temos de ter um grande controlo para poder fazer a coisa como deve ser - e como o Manoel gosta, que é com verdade", diz o actor.

É a busca dessa verdade que continua a manter o realizador vivo, consideram os seus amigos e família. "Os filhos já dizem há muito tempo 'o meu pai está vivo porque continua a fazer filmes, porque quando deixar ele morre'", afirma Luís Miguel Cintra. É uma resposta a que não se chega com facilidade, observa o neto. "Acho que nem ele encontrou ainda. O que encontro é um ser inquieto, mas muito preciso, muito senhor de si, muito senhor das suas vontades", diz.

"É uma pessoa que até ao fim da sua vida se vai sentir nessa inquietação, inclusivamente em relação à sua existência. Talvez seja esse o grande combustível para ele hoje, aos 105 anos, ter a saúde e a vontade e continuar com a capacidade para poder fazer o que mais gosta", sustenta Ricardo Trêpa.

A memória da arte
O melhor presente de aniversário seria este mesmo - continuar a trabalhar. Mas Manoel de Oliveira lamenta as dificuldades que tem sentido em assegurar o apoio financeiro necessário para poder continuar a realizar. "Penso que no país há uma grande indiferença pelo que já realizei. Tanto faz que o meu cinema exista ou não exista", afirmou há um mês, em entrevista à revista francesa "Cahiers du Cinéma".

É um lamento vindo de alguém elogiado por todo o mundo. Em Fevereiro de 2009, a revista "Vanity Fair" perguntou ao galardoado actor norte-americano Dustin Hoffman quem era a pessoa viva que mais admirava. A resposta acontece assim: "O realizador português Manoel de Oliveira, que tem 100 anos e ainda está a trabalhar".

Em 2011, o realizador português explicou o que há na arte. "A nossa memória está nos livros, nas pinturas e nos filmes." Citando o cineasta mexicano Arturo Ripstein, Manoel de Oliveira afirmou que "os governos deviam ajudar os realizadores, não por favor, mas por obrigação, porque o cinema é o espelho da vida - não temos outro."

Quanto à inevitabilidade da morte, é, para quem o conhece, uma realidade quase inimaginável. "Para mim já é uma pessoa que vai ser para sempre, nunca vai morrer", diz Ricardo Trêpa. "Já é eterno. Quando ele partir, vou pedir para ter a sabedoria de chorar de alegria, por ter tido a sorte de conhecer um homem tão poderoso e que me ensinou tanto durante tanto tempo."

Mas Manoel de Oliveira está ocupado demais para a morte. "O que me falta fazer na vida é o resto dos meus filmes, que são bastantes."