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Egipto

Depois da primavera, a desilusão

28 nov, 2011 • Filipe d'Avillez

Em dia de eleições, a Renascença espreita a realidade do Egipto pelos olhos de dois cristãos coptas. Desilusão e apreensão são os sentimentos que prevalecem nesta comunidade.

Depois da primavera, a desilusão
Em dia de eleições no Egipto olhamos a realidade daquele país pelos olhos da minoria cristã copta.
Ambos egípcios, ambos coptas, ambos a viver fora do país. Um é bispo e vive no Reino Unido, outro é tradutor e vive em Portugal. Quando recordam a Primavera Árabe, os sentimentos que contam são muito diferentes.

“Nunca tinha sentido aquilo que senti naqueles dias. Eu queria ir para lá", explica Ashraf Hannah, que veio para Portugal há mais de vinte anos, depois de se apaixonar por uma portuguesa que visitava o Egipto. 

"O meu irmão estava na praça, os meus amigos estavam na praça. Naqueles dois dias em que não conseguíamos chamadas, ligação de internet, nada, eu ia dando em louco. Nessa semanam eu fui outra pessoa, lembro-me muito bem. Eu era capaz de voar, era a vontade que tinha”, descreve Ashraf Hannah.

Já o bispo Angaelos, responsável pela Igreja Copta Ortodoxa no Reino Unido, foi mais pessimista. “Infelizmente, eu era um dos cépticos. Consegui antever então aquilo que se passa agora. Sabia que o aparato do Estado, o estado de espírito e o coração da comunidade não estavam preparados para acolher as mudanças. Estive no Egipto logo a seguir, em Fevereiro, e as pessoas estavam muito eufóricas, muito positivas, mas infelizmente não era sustentável”, recorda.

O bispo não tem dúvidas sobre os responsáveis: “O que tornou tudo ainda menos sustentável foi a incapacidade de o Governo e de o conselho militar manterem a lei e a ordem”.

Também o entusiasmo de Ashraf Hannah se transformou em desilusão. O tradutor aponta o dedo na mesma direcção.

“Eu não sei se de repente encontraram um país nas suas mãos e não sabem o que fazer com isso. Desde o Nasser que os militares são muito ingénuos e não têm experiência, não têm ideia do país que têm nas mãos", diz o tradutor que vive em Portugal.

"Isto é o Egipto, um país pesado, com muitas raízes. Não há experiência. Eu vi muitos discursos de militares na televisão e é ridículo. A única certeza que tenho é que a irmandade islâmica conseguiu controlar o conselho militar”, acrescenta Ashraf Hannah.

"Situação piorou"
A 9 de Outubro, em protesto contra a destruição de uma igreja, milhares de coptas saíram às ruas para se manifestarem diante do edifício da televisão estatal, numa zona chamada Mespiro.

“Esta manifestação dos cristãos foi a primeira desde a revolução e pediu-se autorização três dias antes. Tiveram licença, explicaram o percurso e mais nada. Três dias antes. Qual é o papel das autoridades? Assegurar isso e proteger os manifestantes, certo? Coisa que não aconteceu, pelo contrário. Nas ruas do Cairo, naquele dia, parecia o Irão”, conta Ashraf Hannah.

O balanço foi trágico. Mais de duas dezenas de mortos, alguns esmagados por carros blindados, outros baleados. Apesar das filmagens, os militares culparam os cristãos.

“Eu não sei o que se passou naquela noite", diz o bispo Angaelos. "Só sei que contrariou tudo o que poderia parecer uma reacção normal por parte dos militares contra manifestantes civis. Se o conselho militar foi infiltrado, se a manifestação foi infiltrada, se o exército foi infiltrado, não sei, mas não há qualquer justificação para uma reacção daquelas.”

Durante o regime de Mubarak, os cristãos tinham muitas razões de queixa. Ashraf Hannah lembra-se de exames marcados para o dia de Natal copta, que o impediam de celebrar o feriado com a família. Construir ou reparar uma igreja era, e ainda é, praticamente impossível, há inúmeras histórias de raptos de jovens mulheres coptas que, forçadas a converter-se, acabam casadas com muçulmanos.

O bispo Angaelos confirma que a situação mudou com a mudança de regime, mas não no bom sentido: “Mudou para pior. Nos últimos dez meses houve cerca de 40 ocorrências, o mesmo número que nos dois anos anteriores. Houve mais incidentes - e mais graves. Nunca tínhamos tido o caso de uma igreja incendiada, nunca tínhamos tido o caso de uma igreja arrasada por 'bulldozer'. Nunca tinha acontecido habitantes de uma aldeia serem expulsos por serem cristãos. Chama-se a isso 'limpeza étnica'”.

Os cristãos são ainda cerca de oito milhões. São, de longe, a maior comunidade cristã do Médio Oriente. Mas a realidade demonstra que imigram em maior número que os seus concidadãos muçulmanos e muitos têm medo do futuro.

Certamente poucos aguardam o resultado das eleições de hoje com maior ansiedade que os coptas, perseguidos e discriminados na sua própria terra ancestral.