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D. Manuel Clemente: "Não se pode desistir da política"

09 fev, 2015 • Graça Franco e Ângela Roque (entrevista). Inês Rocha e Edgar Sousa (vídeo)

Jesus Cristo deu uma ordem aos cristãos para se meterem na política que não deve ser ignorada, diz o Patriarca de Lisboa, que faz questão de ter um olhar de esperança sobre o país.

D. Manuel Clemente: "Não se pode desistir da política"
Na semana que será criado cardeal, o Patriarca de Lisboa fala sobre o Papa, o sínodo e a reforma da Curia. Mas lança também um olhar de esperança sobre o país e diz que os cristãos não podem “desistir da política”. O essencial da entrevista de D. Manuel Clemente à Renascença.

D. Manuel Clemente conhece "muita gente" que, no mundo do trabalho e das empresas, não desistiu e não fechou "por convicção religiosa". É gente que preenche a esperança com que o Patriarca de Lisboa faz questão de olhar para o país.

Em entrevista à Renascença, o novo cardeal manifesta-se também muito preocupado com o que se passa no mundo do trabalho, onde se vive "dos maiores problemas e uma das maiores incógnitas sobre o futuro".

Como olha o nosso país?
Vejo-o também com esperança. Mas é uma esperança preenchida. A vida de um bispo fá-lo andar em todo o lado e vejo em tantas escolas, em tantas famílias, em tantas empresas, em tantos serviços públicos ou não públicos... Há gente com vontade de andar para a frente, com capacidade para resolver problemas, que acredito verdadeiramente nesta sociedade, quando nos aproximamos dela. Quando só lemos os chamados indicadores ou ficamos pelos comentários em geral, não apanhamos a sociedade que somos. Nós somos muito melhores do que nos tomamos. Precisamos é de ser apoiados e isso passa-se quer a nível do país quer a nível da nossa Europa, para não falar a nível do mundo. Há muitas sociedades que não avançam  mais e não resolvem melhor os problemas porque são pouco apoiadas nesse sentido. Agora, de onde é que vem o apoio? Dantes, sabíamos como era: os governos cobravam impostos, esses impostos eram distribuídos de acordo com as necessidades da população e pelos organismos públicos e outros. Hoje, não sabe de onde é que vem o dinheiro. É tudo tão anónimo,  tão transfronteiriço, tão globalizante que nos torna a todos muito dependentes.

Os recentes dados sobre a pobreza em Portugal não corroem um bocadinho essa esperança?
Com certeza que temos imenso que fazer, mas, quando falamos em pobreza, já não estão a falar nos mesmos termos em que falávamos em pobreza no século XIX.

Mas quando temos 40% das famílias abaixo do limite de pobreza, sendo que o limite de pobreza são 400 e poucos euros 'per capita', e quando temos as instituições da própria Igreja a clamar por um pacto de emergência nesta luta...
Não vamos lá sem desenvolvimento económico, sabe isso melhor do que eu. Mas, para isso, é preciso investimento.

Mas justifica-se este apelo a um pacto para resolver o problema...
Com certeza. E, sobretudo, justifica-se incentivar  aqueles que já andam para a frente, seja nas empresas, seja nas instituições, a ir nesse sentido porque, indo eles, vamos todos. E, além de tudo isto, põe-se um gravíssimo problema que é o próprio problema do trabalho. Ainda esta manhã, estive com um grande empresário deste país, um homem verdadeiramente interessado no bem daqueles que trabalham na sua empresa. Ele dizia que, hoje em dia, evoluir significa que onde hoje trabalham dez, amanhã haverá um robô que os dispensa, porque fará melhor e mais depressa. Este problema é de tal ordem que leva muita gente, no mundo empresarial,  a dizer que não vai ser pela indústria e pela industrialização que vamos resolver o problema do trabalho, porque essa industrialização vai ser cada vez mais tecnológica e robótica. Isto é um enorme desafio porque sem trabalho não só não conseguimos satisfazer as necessidades das pessoas, como também elas não conseguem satisfazer as suas necessidades porque não se realizam. Este, para mim, é dos maiores problemas e uma das maiores incógnitas sobre o futuro.

Um dos dados preocupantes dos números divulgados pelo INE diz-nos que mesmo entre quem trabalha há uma grande percentagem que corre risco de pobreza...
Não chega àquelas necessidades acrescidas que o desenvolvimento permite. Um pobre, no século XIX, era aquele que não tinha o que comer e o que vestir, nem para si nem para os seus.  Hoje, não é só isso: é comer, vestir, educação, cultura descanso, desporto, hospitais. Os níveis de exigência aumentaram muito, fruto do desenvolvimento positivo, mas muitas pessoas e muitas famílias têm enormes dificuldades para atingir esses níveis básicos.

Espera que novos economistas consigam encontrar novas receitas?
Com certeza. Não é por acaso que economia significa governo da casa. Para já, é importante descobrir como é possível que cada casa, cada família encontre os meios suficientes para viver acima dos níveis de pobreza com vidas dignas e realizadoras para os seus membros. Mas não é fácil.

O que é que a Igreja pode fazer aqui para mudar?
Em primeiro lugar, lembrar constantemente os níveis de exigência da dignidade humana que saem do Evangelho e, aí, vai ao encontro da reflexão e das  aspirações da humanidade. Depois, tem de agir através de todos os cristãos e cristãs que, no mundo da economia, no mundo empresarial, no mundo institucional possam fazer e possam criar, com vontade de resolver o problema e com uma vocação religiosa acrescida de saber que, quando estão a resolver o problema dos outros, estão a resolver o seu próprio problema, porque não há maneira de chegar a Deus sem ser através dos outros. Isto é a encarnação cristã e o cristianismo no seu melhor e há muita gente no trabalho e nas empresas que não fecha, não desiste, também por esta convicção religiosa. E também no campo da inovação. Mas, repare: nós estamos a falar, apesar de tudo, no "cocuruto" do mundo. E o que se passa do Mediterrâneo para baixo? O que se passa com os outros dois terços da humanidade? Há uma imensa multidão que ainda está na pré-história desta conversa.

Fala-se muitas vezes que são precisos mais cristãos na política...
Sem dúvida nenhuma.

Em que é que podem, de facto, marcar a diferença?
A politica é a vocação do bem comum, da organização da polis, da cidade onde todos caibam e possam ser felizes, numa vida que seja digna. Ter a vocação de organizar a cidade no sentido do bem comum é uma vocação muito bonita. Pôr isso, alimentar isso no coração de muito homem, muita mulher e muito jovem é importantíssimo. Há uma frase de Jesus que é muito citada, muitas vezes só num sentido, que é "dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César". Se Jesus nos diz para dar a Deus o que é de Deus, também diz para dar a César o que é de César. César é o mundo, é a polis. E é uma ordem. Cumprir esta ordem é também muito evangélico e muito necessário. Não se pode desistir da política e não se pode apagá-la pela sua caricatura ou pela sua corrupção. Há um bocadinho, falávamos do mau exemplo de alguns eclesiásticos que não ajuda nada a que a Igreja cumpra a sua missão. Nada, absolutamente nada! Mas a mesma coisa, agora em relação à política: os exemplos que se dizem ou que se alegam de corrupção na política também não nos podem levar a considerar a vida politica toda como um mal, porque ela é um bem como a vida da Igreja, em si, é um bem.

Pode ouvir a entrevista na íntegra na "Edição da Noite" da Renascença, depois das 23h00