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“Não podemos falar só de aborto, homossexualidade e contracepção”

19 set, 2013 • Filipe d’Avillez

Papa descreve-se como um “pecador” que é simultaneamente “astuto” e “ingénuo”, numa grande entrevista publicada em simultâneo em mais de uma dezena de jornais jesuítas.  

“Não podemos falar só de aborto, homossexualidade e contracepção”
Francisco considera que a Igreja tem de evitar falar apenas dos mesmos temas, nomeadamente o aborto, o casamento homossexual e a contracepção. Sem deixar espaço para dúvidas sobre as posições oficiais da Igreja em todos estes assuntos, o Papa diz que não é preciso estar sempre a bater na mesma tecla.

“Não podemos insistir somente sobre questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e uso dos métodos contraceptivos. Isto não é possível. Eu não falei muito destas coisas e censuraram-me por isso. Mas quando se fala disto, é necessário falar num contexto.”

“De resto, o parecer da Igreja é conhecido e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário falar disso continuamente”, insiste o Papa.

“A Igreja por vezes encerrou-se em pequenas coisas, em pequenos preceitos”, diz ainda Francisco, para quem a melhor imagem para a instituição católica é a de um hospital de campanha.

“Vejo com clareza que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de tudo o resto. Curar as feridas, curar as feridas... E é necessário começar de baixo”.

Ainda sobre a questão da homossexualidade, o Papa recorda o seu contacto com esta comunidade enquanto estava em Buenos Aires: "Devemos anunciar o Evangelho em todos os caminhos, pregando a boa nova do Reino e curando, também com a nossa pregação, todo o tipo de doença e de ferida. Em Buenos Aires recebia cartas de pessoas homossexuais, que são 'feridos sociais', porque me dizem que sentem como a Igreja sempre os condenou. Mas a Igreja não quer fazer isto."
 
"Durante o voo de regresso do Rio de Janeiro disse que se uma pessoa homossexual é de boa vontade e está à procura de Deus, eu não sou ninguém para julgá-la. Dizendo isso, eu disse aquilo que diz o Catecismo. A religião tem o direito de exprimir a própria opinião para serviço das pessoas, mas Deus, na criação, tornou-nos livres: a ingerência espiritual na vida pessoal não é possível. Uma vez uma pessoa, de modo provocatório, perguntou-me se aprovava a homossexualidade. Eu, então, respondi-lhe com uma outra pergunta: 'Diz-me: Deus, quando olha para uma pessoa homossexual, aprova a sua existência com afecto ou rejeita-a, condenando-a?' É necessário sempre considerar a pessoa. Aqui entramos no mistério do homem. Na vida, Deus acompanha as pessoas e nós devemos acompanhá-las a partir da sua condição. É preciso acompanhar com misericórdia. Quando isto acontece, o Espírito Santo inspira o sacerdote a dizer a coisa mais apropriada."

Pecador, ingénuo e astuto
As palavras de Francisco surgem numa longa entrevista, publicada em simultâneo em mais de uma dezena de revistas jesuítas de todo o mundo, incluindo a portuguesa “Brotéria”.

Nele o Papa fala longamente da própria Sociedade de Jesus, a que pertence, e da influência que teve para si, mas começa por definir-se em termos bastante claros: “Eu sou um pecador. Esta é a melhor definição. E não é um modo de dizer, um género literário. Sou um pecador.”

A este termo o Papa adiciona ainda “ingénuo” e “astuto”.

“Posso talvez dizer que sou um pouco astuto, sei mover-me, mas é verdade que sou também um pouco ingénuo. Sim, mas a síntese melhor, aquela que me vem mais de dentro e que sinto mais verdadeira, é exactamente esta: ‘Sou um pecador para quem o Senhor olhou.’”

Francisco fala também da necessidade que tem de viver em comunidade, voltando a invocar a sua decisão de não ir viver para os apartamentos pontifícios, e associa essa necessidade à sua vontade de receber conselhos. Até porque a sua experiência tem-lhe indicado que a primeira decisão nem sempre é a mais certa.

“Desconfio das decisões tomadas de modo repentino. Desconfio sempre da primeira decisão, isto é, da primeira coisa que me vem à cabeça fazer, se tenho de tomar uma decisão. Em geral, é a decisão errada. Tenho de esperar, avaliar interiormente, tomando o tempo necessário.”

O Santo Padre diz que enquanto Papa depende muito dos conselhos dos outros e espera que sejam genuínos e não meras formalidades: “Os Consistórios e os Sínodos são, por exemplo, lugares importantes para tornar verdadeira e activa esta consulta. É necessário torná-los, no entanto, menos rígidos na forma. Quero consultas reais, não formais.”

“A consulta dos oito cardeais, este grupo outsider, não é uma decisão simplesmente minha, mas é fruto da vontade dos cardeais, tal como foi expressa nas Congregações Gerais antes do Conclave. E quero que seja uma consulta real, não formal”, explica.

Ainda na mesma entrevista, que tem cerca de vinte páginas, o Papa fala na necessidade de se escutar o povo em termos de religião, dando o seguinte exemplo: “É como com Maria: se se quiser saber quem é, pergunta-se aos teólogos; se se quiser saber como amá-la, é necessário perguntá-lo ao povo”.

“Não é preciso sequer pensar que a compreensão do sentir com a Igreja esteja ligada somente ao sentir com a sua parte hierárquica”.

Santos anónimos
Quando fala de santidade, o Papa prefere dar exemplos claros da vida comum. Uma santidade que é possível ver nas casas e na vida diária de cada um: “Vejo a santidade no povo de Deus paciente: uma mulher que cria os filhos, um homem que trabalha para levar o pão para casa, os doentes, os sacerdotes idosos com tantas feridas mas com um sorriso por terem servido o Senhor, as Irmãs que trabalham tanto e que vivem uma santidade escondida. Esta é, para mim, a santidade comum.”

“Esta é a santidade da Igreja militante de que fala também Santo Inácio. Esta é também a santidade dos meus pais: do meu pai, da minha mãe, da minha avó Rosa, que me fez tanto bem”, recorda.

Na entrevista concedida ao jesuíta Antonio Spadaro, o Papa fala também do caminho ecuménico e deixa mesmo em aberto o discernimento de uma nova forma de exercer o ministério petrino, que permita uma união com a Igreja Ortodoxa.

Para já, explica, os católicos têm a aprender com o conceito de sinodalidade praticada no Oriente: “Talvez seja tempo de mudar a metodologia do sínodo, porque a actual parece-me estática. Isto poderá também ter valor ecuménico, especialmente com os nossos irmãos ortodoxos. Deles se pode aprender mais sobre o sentido da colegialidade episcopal e sobre a tradição da sinodalidade.”

“O esforço de reflexão comum, vendo o modo como se governava a Igreja nos primeiros séculos, antes da ruptura entre Oriente e Ocidente, dará frutos a seu tempo”, diz o Papa Francisco.

Para Bergoglio, a Igreja deve ser tanto mãe como pastora: "Sonho com uma Igreja Mãe e Pastora. Os ministros da Igreja devem ser misericordiosos, tomar a seu cargo as pessoas, acompanhando-as como o bom samaritano que lava, limpa, levanta o seu próximo. Isto é Evangelho puro. Deus é maior que o pecado."
 
Esta atitude, explica o Papa, é mais importante que qualquer reforma: "As reformas organizativas e estruturais são secundárias, isto é, vêm depois. A primeira reforma deve ser a da atitude. Os ministros do Evangelho devem ser capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de saber dialogar e mesmo de descer às suas noites, na sua escuridão, sem perder-se. O povo de Deus quer pastores e não funcionários ou clérigos de Estado".

[Notícia actualizada às 18h12]