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Quando votar era "uma coisa estonteante"

22 abr, 2015 • Ana Carrilho

Foi há 40 anos. Na Barreiro, zona operária com grandes tradições de oposição ao Estado Novo, as primeiras eleições pós-25 de Abril foram vividas com grande intensidade.

Quando votar era "uma coisa estonteante"

As eleições de 25 de Abril de 1975 registaram a maior adesão de sempre. Quase 92% dos 6,2 milhões de eleitores recenseados quiseram participar nas primeiras eleições depois da "revolução dos cravos". Nunca mais houve uma participação tão elevada. A alegria e a satisfação por também poder ajudar a decidir os destinos do país levaram muita gente às urnas. A maior parte votou pela primeira vez na vida. Um direito que as mulheres só conquistaram com a democracia.

Na vila do Barreiro, zona operária com grandes tradições de oposição ao Estado Novo e forte implantação do Partido Comunista, o processo eleitoral foi vivido com grande intensidade.

No dia 15 de Novembro de 1974, o Governo de Vasco Gonçalves aprovou o DL 621-A/74 que definia a Lei Eleitoral, incluindo o processo de recenseamento e a data das eleições. O recenseamento deveria ter lugar entre 9 e 29 de Dezembro, mas o processo revelou-se mais moroso e complicado do que o previsto e prolongou-se até ao fim de Janeiro de 1975.

"Uma alegria enorme"
António Sousa Pereira, hoje director do jornal "online" "Rostos", então jovem militar e repórter de "O Setubalense", diz que a festa começou com o recenseamento.

"Recordo-me de me ir recensear à SFAL [Sociedade Filarmónica Agrícola Lavradiense], no Lavradio, e eram filas e filas de pessoas, pela noite dentro, que se queriam recensear. Era uma alegria enorme sentirem que aquele acto era o anunciar da decisão seguinte de ir votar".

O casal Estevão Brito e Odete Martins pertencia à Comissão Administrativa da Junta de Freguesia do Lavradio e também recorda a alegria com que as pessoas viveram aqueles dias. Odete, então professora da tele-escola, participou no recenseamento e na elaboração dos cadernos eleitorais. "Nuns casos, as pessoas vinham espontaneamente à junta; noutros tínhamos que ir, porta a porta, a casa dos habitantes. Foi um trabalho muito demorado e muito participativo".

Na mesma SFAL, o centro nevrálgico do processo eleitoral em 1975 nesta freguesia do Barreiro, desfiaram memórias e emoções 40 anos depois.

As mesas de voto estavam instaladas na Escola Álvaro Velho e "houve uma afluência estrondosa", diz Estevão Brito. "Às 7h00, quando chegámos para preparar as coisas, já havia filas bastante grandes e ali entre as 10h00 e o meio–dia eram enormes". Já com o cartão de eleitor diziam: "Vamos votar, vamos votar".

Sem conseguir esconder a emoção, Estevão Brito resume: "Foi uma coisa estonteante".

Chegar cedo para votar
Em 1975, muitos portugueses votaram pela primeira vez. Para as mulheres o direito ao voto era mais uma conquista da democracia.

Odete Martins revela que era como "uma ansiedade que elas queriam libertar, um desejo de poder manifestar a sua posição e de dizer que também queriam participar nos destinos do país. Havia um grande entusiasmo; as pessoas quase que não dormiram nessa noite e quase acordaram à porta das mesas de voto".

Para Hortense Sousa e boa parte da sua família, quase toda ferroviária, a participação nas eleições de 1975 também foi uma estreia. "Foi bom, votei naquilo que era a ideia dos meus avós e dos meus pais. Foi uma alegria muito grande, não se via ninguém triste, nem a reclamar".

Nas diversas freguesias do Barreiro foram instaladas cerca de 120 mesas de voto. E se os eleitores chegavam cedo para exercer o seu direito, dificilmente arredavam pé. "Toda a gente queria saber os resultados e nós só os afixámos muito para lá das 21h30, muito para lá", revela Estevão Brito. 

"Ninguém esquece o direito de poder decidir, mesmo que fosse em branco. O voto era um acto de cidadania assumido com uma grande dignidade, as pessoas tinham em grande orgulho em ir votar", sublinha António Sousa Pereira.

Para alguns, associava-se ainda "a emoção de ter lutado, de ter resistido às perseguições políticas e à prisão para chegar àquele dia".

António Sousa Pereira votou pela primeira vez em Abril de 1975, viveu o dia e fez a reportagem para "O Setubalense".

Foram duas páginas com depoimentos e muitas fotos que pretendiam mostrar o ambiente que se viveu, com muitas filas, "a multidão que corria às urnas. As imagens falavam por si".

No Barreiro, como se esperava, o Partido Comunista foi a força política dominante, mas a nível nacional a vitória foi socialista.

"O que está vedado aos católicos"
Em 1975, o único jornal regional do Barreiro e Moita estava ligado à Igreja. A comemorar 25 anos, lutava, como quase todos os periódicos, pela sobrevivência devido ao grande agravamento dos preços do papel de jornal e à actualização dos contratos e salários dos gráficos.

Uma semana antes das eleições para a Assembleia Constituinte, o semanário publicou extractos das Conclusões da Assembleia Plenária do episcopado português, reunida em Fátima. Neles se sublinhava que "ninguém se deve abster de votar; ninguém deve votar em branco".

O documento referia ainda que a obrigação de cada qual era de se esclarecer sobre os partidos em confronto para fazer "uma opção conscienciosa". E alertava os católicos para a diversidade de opções legítimas pelas quais poderiam decidir-se. "O que está vedado aos católicos é dar o voto a partidos que, pelos seus princípios ideológicos, se lhes afigurem incompatíveis com a concepção cristã do Homem e da sua vida em sociedade".

Na véspera das eleições, em dia de reflexão, o "Jornal do Barreiro" fazia apelo a que todos votassem "com a recta intenção de ajudar a construir um Portugal melhor".

E no dia 1 de Maio, em que o destaque era dado à "longa história dos trabalhadores", o semanário católico salientava o clima ordeiro em que as eleições tinham decorrido, o facto do povo ter votado pela via socialista e "de não querer extremismos nem soluções de ditadura".