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Aos 90 anos, Mário Soares "não abandona o palco". É o "rosto" do regime

06 dez, 2014 • Pedro Rios

Recusa reformar-se, recusa deixar de ser personagem central da vida política. É amado e odiado em medidas proporcionais. Mário Soares, o "actor que, mesmo assobiado pelo público", insiste em representar, faz 90 anos este domingo.

Aos 90 anos, Mário Soares "não abandona o palco". É o "rosto" do regime
É o ex-político com "reforma abastada", beneficiário de "mordomias" de ex-Presidente "inadmissíveis, com uma fundação que não serve para mais nada a não ser absorver os euros que o país não tem". É o "principal culpado" entre os "que arrasaram o país". O homem que acabou com "o último império do ocidente". Mas também o democrata que "lutou uma vida inteira" para que "todos tivéssemos uma vida melhor", alguém que "neste momento deve ser o único estadista em Portugal", "a última resistência contra este fascismo criminoso da troika neoliberal".

São citações de comentários publicados pelos utilizadores em notícias do "site" da Renascença, meros exemplos de uma avalanche de declarações de amor e ódio políticos a Mário Soares.

Este domingo, o antigo Presidente da República e antigo primeiro-ministro celebra o 90.º aniversário. Oficialmente, está afastado da política. Está mesmo?

No final de Novembro, visitou José Sócrates na prisão de Évora, arrastando um magote de jornalistas. A prisão do ex-primeiro-ministro, disse, é uma "infâmia". Na terça-feira, inaugurou uma avenida na Amadora com o seu nome, mas não se ficou pelo protocolo: atacou as políticas "neoliberais e antidemocráticas" do Governo. Dois meros exemplos de uma agenda cheia, pouco comum num político tão veterano.


Visita de Soares à prisão de Évora deu que falar. Foto: Rosário Silva/RR

"É alguém que não admite a reforma, recusa reformar-se e prefere continuar activo na vida política na medida do possível", diz à Renascença Joaquim Vieira, autor de "Mário Soares – Uma Vida" (2013), biografia de quase 900 páginas. "Continuou sempre como um grande político", afirma o politólogo António Costa Pinto.

O "rosto" do regime
Como "esteve presente na vida colectiva dos portugueses mais do que qualquer outra personagem" política, refere Joaquim Vieira, as pessoas "tendem a focar nele muitas das insuficiências, dos defeitos e dos problemas que este regime tem. Mário Soares é muito o rosto deste regime, ele é um dos pais fundadores do regime".

E Soares tem a sua galeria de críticas recorrentes. Fala-se em fundações e nos seus supostos vícios e logo surge a Fundação Mário Soares. Fala-se no PS e logo surge o "fax de Macau" e o polémico livro "Contos Proibidos – Memórias de um PS Desconhecido", de Rui Mateus. Na internet circulam histórias de uma bandeira pisada em Londres, em 1973 (episódio que, diz Joaquim Vieira, "foi desmentido, não há qualquer testemunho de que isso tenha acontecido").

"Divide muito a opinião pública – uns são a favor, outros são contra –, mas é uma relação muito afectiva, apesar disso. Como quando se critica um pai", analisa Vieira.

"Há vários ressentimentos, nomeadamente de pessoas que estavam nas antigas colónias e que tiveram que abandonar esses territórios e culpam muito Mário Soares por isso – toda a perturbação, a reviravolta que aconteceu nas suas vidas."

António Costa Pinto também aponta o processo de descolonização como uma das razões para a figura de Soares despertar anticorpos em segmentos da sociedade portuguesa. Mas há mais motivos a despertar reacções noutros segmentos: o "Mário Soares da luta contra o Partido Comunista"; o "Mário Soares do FMI e da austeridade"; o Mário Soares que "nos últimos anos" "representa valores bastante associados à esquerda" para irritação do eleitorado de direita que votou nele em 1975.

O rei da República
O "Presidente de todos os portugueses" teve um percurso político "tudo menos linear", como escreve Joaquim Vieira na biografia do antigo estadista.

OO jornalista escreve que, "para o bem e para o mal", Soares é a "personificação do regime". É o "maior obreiro do regime democrático" em Portugal, o primeiro civil eleito Presidente da República depois do 25 de Abril, sinal da "plena institucionalização da democracia no país".

Também por isso muita gente o compara a um "monarca" (facto curioso para um "republicano dos sete costados"), alguém que sente que deve agir ou governar, diz à Renascença.

Sinal disso mesmo: a "totalmente inesperada" terceira candidatura à Presidência da República, em 2006, na qual perdeu para Cavaco Silva e Manuel Alegre.

Mário Soares "não abandona o palco". "Digo isso no livro: é aquele actor que, mesmo assobiado pelo público, continua a insistir em representar", afirma o jornalista. Se fizesse como "outros senadores da república" que "intervêm menos", como Jorge Sampaio, Adriano Moreira e Freitas do Amaral, "não motivaria esse tipo de reacções tão constantes".

Uma certa dose de "loucura"
Na sucessão de declarações (na coluna regular que mantém no "Diário de Notícias" ou em ocasiões públicas), Joaquim Vieira detecta "uma certa dose de loucura ou inconsciência", uma "tentação irresistível" para intervir e não "ficar calado", mesmo que um certo PS assim o preferisse.

António Costa Pinto alinha na análise e diz que tudo o que Soares escreve e diz tem "objectivos". "Raramente faz coisas apenas numa dimensão emotiva", aponta o investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

A visita a Sócrates na prisão é mais do que um acto de "solidariedade": para Mário Soares, "pode contribuir para reforçar esta onda política e eleitoral contra o actual Governo".

Diz Joaquim Vieira: "Ele não nunca – nunca – deixará de emitir as suas opiniões enquanto o puder fazer, mesmo que, por vezes, possa ser embaraçoso para a sua área política". E conclui: "É uma coisa que lhe está na massa do sangue".