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Álvaro perguntou à troika: "Vocês sabem qual é o salário mínimo em Portugal?"

05 dez, 2014 • João Carlos Malta

A Renascença leu o livro que o ex-ministro da Economia escreveu sobre a passagem no Governo. Há de tudo: intriga política, luta contra lóbis, um estrangeirado na luta contra o "status quo" e revelações dos bastidores das negociações com a troika.

Álvaro perguntou à troika: "Vocês sabem qual é o salário mínimo em Portugal?"
Poul Thonsom (FMI - dta), Rasmus Ruffer (BCE - esq) e Juergen Kroeger (Comissão Europeia, centro) 12/08/11
Álvaro Santos Pereira não descreve a preto e branco a relação com a troika durante o período em que foi ministro da Economia. Um convívio com muitos gradientes, que em "Reformar Sem Medo: Um Independente no Governo ", o livro que Álvaro acaba de lançar, fica carimbado com uma salomónica classificação sobre a acção do FMI, BCE e UE: "Teve aspectos positivos e menos positivos". "O futuro dirá e julgará melhor o papel da troika", conclui o antigo ministro.

Mas no meio das meias tintas, há muitos episódios e avaliações concretas. Uma coisa é certa para o ex-ministro: a troika foi aliada (na luta contra os lóbis – da energia, por exemplo) e obstáculo no desenho do programa de assistência a Portugal, nomeadamente na falta de planos para o investimento ou na sensibilidade para interpretar a importância da Concertação Social.

Mas Álvaro dá a entender que o peso dos credores nunca o fez ter medo. Ilustra esse estado de espírito com duas conversas à porta fechada. A versão aqui transcrita é sua e só sua. Vamos ao primeiro episódio.

A troika argumentava que o ajustamento português não tinha feito descer os salários de forma pronunciada. Logo, eram necessárias medidas adicionais. Álvaro recorda que teve de saltar da cadeira para falar grosso.

Assistamos em diferido ao discurso directo. "'Vocês sabem qual é o salário mínimo em Portugal?', perguntei. E, sem esperar pela resposta, disse "485 euros! 485 [Entretanto, foi actualizado para os 505 euros]! Acham que conseguiriam viver com 485 euros por mês, mesmo em Portugal? ".

"A minha intervenção foi seguida de um silêncio sepulcral", culmina Álvaro em tom triunfal. Apesar de ter pertencido a um Governo que reduziu salários aos funcionários públicos, aquela era a linha vermelha que não quis ultrapassar.

E, qual "esquerdista", o alto quadro da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) relembra outro puxão de orelhas que deu aos representantes dos credores, no qual usa uma imagem que ouvimos tantas e tantas vezes vinda da ala mais esquerda do Parlamento.

"E disse ainda que Portugal não era um modelo, mas sim uma economia com pessoas e com empresas reais, e que por isso nós não éramos nenhuns ratos de laboratório ('guinea pigs') de uma qualquer grande experiência social e económica. Por isso, não íamos aceitar nada do que estava a ser proposta", escreve.

E prossegue, sem evitar desfraldar mais uma vez a bandeira da vitória: "A nossa posição acabou por prevalecer e estas propostas da troika ficaram todas pelo caminho".

Havia alternativa?
No capítulo sobre as relações com a troika, o autor não deixa de fazer as perguntas que durante muito tempo andaram no espaço público. A primeira: "Havia alternativa à troika?"

"Havia. Há sempre alternativa", escreve, naquilo que parece uma crítica velada ao discurso de outros colegas do Governo que defenderam a inexistência de opções.

Mas, logo de seguida, dá um passo atrás: "Só que a alternativa teria significado não ter fundos suficientes para o Estado cumprir as suas obrigações, quer em termos de pensões e salários, quer em relação aos seus credores". Ou seja, afectaria todos os portugueses. Dos professores a colectores do lixo, ilustra.

Mais "troikista" do que a troika?
Álvaro olha ainda para dentro e lança outra questão que diz que foi colocada vezes sem conta: "O Governo foi mais troikista do que a troika?" Ou "será que fomos para além do memorando?"

Nesta resposta, Álvaro olha apenas para o seu ministério, quando a crítica era muito mais vasta. "A resposta é sim e não. Sim, porque fomos para além do memorando de entendimento inicial na área das reformas económicas…. Contudo, não fomos além da troika na questão laboral, não só para preservar a paz social, mas também porque estávamos certos de que tal seria inconstitucional".


Álvaro Santos Pereira critica algumas opções da troika, mas diz que Portugal não tinha verdadeira alternativa. Foto: Lusa

Apesar das críticas que vai fazendo à acção dos credores, deixa um lembrete aos que gritam "que se lixe a troika". Sem ela, diz, haveria muito mais austeridade, muito mais dificuldades e mais convulsões sociais. "Afirmar o contrário é pura demagogia, para já não dizer desonestidade intelectual".

Mas as críticas voltam, a ter espaço: do valor do pacote de ajuda, que diz ser insuficiente, à inexistência de qualquer racionalidade económica para no desenho do programa de apoio não estarem discriminados incentivos à economia.

Para Álvaro, a troika não deu a importância devido à falta de financiamento à economia (caiu 15% entre 2011 e 2012, num total de 20 mil milhões). "Uma calamidade", escreve. Mais, o entendimento sobre o valor da concertação social e da decorrente paz social nunca foi também uma prioridade da troika, que analisava o país a partir da estatística internacional.

Mas numa enunciação em que por cada erro há uma virtude, Álvaro logo chama a atenção para a ajuda preciosa de que sempre que se socorreu para abrir as portas fortificadas dos lóbis internos. O corte nas rendas da energia é um exemplo.

E depois do adeus?
Nas conclusões do livro, o ex-ministro diz que as pessoas o abordam na rua e lhe perguntam se a experiência governativa o fez mudar de ideias sobre Portugal.

Álvaro diz a todos que continua a acreditar em Portugal e que não mudou a opinião sobre o futuro mais ou menos próximo. Tem "orgulho" em Portugal, "um dos melhores países para se viver na Europa". "Porém", faltam fazer umas quantas coisas.

E enumera: 1) haver uma solução europeia para a crise da dívida; 2) um reescalonamento dessa mesma dívida; 3) diminuir a despesa do Estado nos próximos anos e fazer a verdadeira reforma da Segurança Social; 4) continuar a consolidação orçamental; 5) uma estratégia de fomento industrial e económico relativamente consensualizada; 6) a continuação da aposta nos recursos naturais e produtivos, bem como o investimento na educação, na inovação e na formação profissional.

E resume com duas frases o estado de alma que a governação lhe deixou: "A minha experiência governativa não diminuiu, pois, a minha fé em Portugal e no nosso futuro". "O nosso país vale a pena".