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Entrevista

António Guterres. "A sociedade europeia está a ensinar aos governos o que eles devem fazer"

07 set, 2015 • Raquel Abecasis e Eunice Lourenço

Em entrevista à Renascença, o alto comissário da ONU para os Refugiados explica o que deve ser feito rapidamente na UE, rejeita a ideia de que os terroristas usem as deslocações dos refugiados para se infiltrarem na Europa e diz que "a seu tempo" se verá se faz sentido uma candidatura a secretário-geral da ONU.

António Guterres. "A sociedade europeia está a ensinar aos governos o que eles devem fazer"

António Guterres está a poucos meses de deixar o cargo no serviço das Nações Unidas para os Refugiados. Ao longo destes dez anos, assistiu a um aumento dramático dos número de deslocados no mundo por causa de guerras e perseguições. Foi com pena que viu as acções dos governos europeus serem decididas pelo medo, mas a sua esperança está na sociedade civil que, diz, está a empurrar os receios para um canto e a mostrar aos governos o que devem fazer.

Em entrevista à Renascença, Guterres lamenta as atitudes de vários governos da União Europeia, diz o que deve ser feito para acolher os milhares de sírios que chegam à Europa e elogia a criação em Portugal da Plataforma de Apoio aos Refugiados.

Rejeita a ideia de que os terroristas usem as deslocações dos refugiados para se infiltrarem na Europa e diz que "a seu tempo" se verá se faz sentido uma candidatura a secretário-geral da ONU.

Na sexta-feira disse que a Europa não pode ficar pelas mudanças de pequenos passos, que tem de dar um salto na forma como está a lidar com a crise em curso. Que salto deve ser esse?
Temos, neste momento, cerca de quatro mil pessoas que chegam todos os dias à Grécia e depois quatro mil pessoas que atravessam a fronteira entre a Grécia e a Macedónia, entre a Macedónia e a Sérvia, entre a Sérvia e a Hungria e, como se tem reparado, não há nenhuns preparativos para receber as pessoas, para as registar, para verificar as suas necessidades.

A assistência é completamente insuficente e desorganizada e, depois, cada país toma medidas, umas diferentes das dos outros, que causam, em certas situações, como aconteceu, recentemente, na Hungria, como tinha acontecido na Macedónia, bloqueios, situações de tensão, de violência, o que para populações como as que fugiram da Síria -  com as condições dramáticas que todos conhecemos, famlilias com casas destruidas, com membros mortos, com sofrimento enorme - , é verdadeiramente inadmissível e a Europa tem a obrigação de oferecer um mecanismo eficaz de recepção, de triagem de necessidades e de registo e, depois, com a disponibildiade necessária de todos os países europeus, de receber estas pessoas com dignidade e lhes proporcionar um futuro.

Quatro mil por dia parece muito, mas não esqueçamos que estamos numa Europa que tem, só na União Europeia, 508 milhões de habitantes e até agora chegaram cerca de 300 e tal mil pessoas. O Líbano sozinho tem um terço da população refugiada neste momento. Se a Europa estiver organizada isto é perfeitamente gerível. Para isso, é preciso que a União, os Estados-membros ponham na Grécia, na Hungria e na Itália instalações de recepção adequadas que dêem a assistência que é necessária, o número de pessoas suficiente para registar, para detectar quem tem necessidades de protecção e depois haja um mecanismo de relocalização para todos os Estados europeus de todos aqueles que forem reconhecidos como verdadeiros refugiados ou com necessidades de acordo com a lei internacional.

Com a dimensão da União Europeia será relativamente fácil, com a participação de todos,  ter uma distribuição equitativa e evitar a situação actual em que praticamente são a Alemanha, a Suécia e mais um ou dois países que estão a fazer todo o esforço.

E essa maior abertura desses países pode vir a fazer a diferença e a fazer com que a UE dê esse passo de responsabilidade?
A minha grande esperança, neste momento, para além do exemplo da Alemanha - e todos devemos prestar homenagem à chanceler Merkel pela frontalidade das suas posições, quer a garantir acolhimento de refugiados, quer na forma como condenou veementemente manifestações de xenofobia que, embora com carácter marginal e minoritário, ocorreram na Alemanha. É essa coragem que falta a muitos dos agentes políticos - é a sociedade civil. A verdade é que estamos a assistir na Europa a um momento de viragem nas opiniões públicas.

Em Portugal, criou-se uma Plataforma de Ajuda aos Refugiados com dezenas de organizações, os meus amigos do Conselho Português de Refugiados têm recebido milhares e milhares de telefonemas de famílias que estão disponíveis para receber sírios; em Espanha, há uma mobilização enorme da sociedade civil; na Inglaterra, os tablóides de repente transformaram-se em jornais de defesa dos refugiados; na própria Hungria, as populações nas ruas oferecem água e alimentos aos refugiados; na Áustria uma recepção admirável, na Baviera também... Sinto que há, de repente, uma enorme comoção europeia e todos os sentimentos de solidariedade, toda a força dos valores que são valores europeus de compaixão, de solidariedade ... isso para mim é a grande esperança. Isto porque os governos obviamente, em muitas circunstâncias, têm agido da forma restritiva como têm agido porque têm medo dos partidos mais à direita com posições xenófobas; os governos agora têm de reconhecer que as coisas estão a mudar e que a sociedade europeia está ela própria a assumir os valores europeus e a ensinar aos governos o que eles devem fazer.

E o que fez mudar as opiniões públicas? Pensa que são estas imagens mais recentes e sobretudo a fotografia do menino sírio que deu a volta ao mundo?
Acho que as pessoas vêem as coisas de forma diferente também em função da distância. Neste momento, estas tragédias bateram-nos à porta e tem havido uma mobilização gigantesca da comunicação social, que tem tido um papel extremamente positivo, mostrando essa realidade, uma realidade que é extremamente próxima e que se liga às nosssas responsabilidades, à responsabilidade de cada um de nós como cidadão europeu. Isso funcionou em pleno e foi uma espécie de rebate de consciência que se está a propagar de forma impressionante na sociedade civil europeia e para a qual obviamente aquela tragédia da familia curda contribuiu. Mas penso que não foi um factor apenas, acho que é o conjunto de todas estas situações.

De alguma forma, quando olhamos para a fase europeia actual vemos que há contradições nas emoções com as quais políticos e comunicação social jogam. Há medo, receios, inseguranças por causa da situação económica, por causa das manifestações terroristas e que levam a que aquelas que defendem perspectivas xenófobas, racistas, contra os estrangeiros procurem explorar esses sentimentos de medo, essas emoções de receio. Mas, por outro lado, há em todos os seres humanos, a compaixão, a solidareidade, o sentimento de ver o próximo sofrer e se mobilizar para o ajduar. Acho que, neste momento, esta segunda tendência está a triunfar e está a pôr de lado, a empurrar para o canto todas essas manfiestações tão negativas que, infelizmente, se estavam a verificar na sociedade europeia e a justificarem muitas políticas restritivas, muitas acções menos em conformidade com os princípios da humanidade que alguns governos europeus foram tomando.

O que é que desejaria que a União Europeia fizesse como um todo?
O que temos defendido e que esperamos que o Conselho de Ministros de Assuntos Internos de dia 14 possa compreender e aceitar é a necessidade de, na Grécia, na Hungria e na Itália, ter centros de recepção com capacidade para acolher as pessoas, para lhes dar um tratamento humano, alimentação, cuidados de saúde, as coisas básicas que as pessoas necessitam numa situação destas e, ao mesmo tempo, isso seja feito num ambiente acolhedor. A pior coisa que pode acontecer é chegar à Europa e sentir-se recebido com hostilidade, com violência. Centros de recepção como existem em muitas outras partes do mundo onde estas coisas têm acontecido. A grande maioria, 86%, dos refugiados do mundo estão no mundo subdesenvolvido ou em vias de desenvolvimento.

Em relação à migração económica, haverá seguramente oportunidade de imigração legal que podem ser obtidas, mas também haverá o direito dos Estados que não queiram receber os migrantes de os enviar de volta para os países de origem, desde que o façam com dignidade e dentro do respeito pelos direitos humanos. Em relação àqueles que fogem de situações de conflito, então precisamos de um mecanismo massivo para receber, na nossa estimativa para o período de 2016, 200 mil pessoas, a partir de esses centros de recepção na Grécia, na Hungria, na Itália e com uma chave de repartição de acordo com as possibilidades de cada país.

Naturalmente, que a Alemanha desempenhará sempre um papel muito importante e países como Portugal e a Eslováquia terão um papel muito mais reduzido, mas proporcionalmente às possibilidades de cada país e de acordo com critérios objectivos, é preciso fazer com que toda a Europa se mobilize para receber estes refugiados. À escala dos problemas que hoje temos no mundo, com a dimensão da União Europeia, isto é uma situação perfeitamente gerível se todos estiverem envolvidos e empenhados.

Para além disso, é preciso criar oportunidades legais de chegar à Europa sem ser através dessas redes de contrabandistas que são redes de "gangsters", que maltratam as pessoas e isso tem a ver com as políticas de vistos que têm de ser mais flexiveis, com a oportunidade de bolsas de estudo para estudantes sirios na Europa, tem a ver com a chamada reinstalação ou a dimensão humanitária para as quais já existe um programa mais reduzido, que permite trazer gente do Líbano, da Jordânia, da Turquia, particularmente os mais vulneráveis para países europeus, para os Estados Unidos da América e para o Canadá.

São também necessárias formas de reunificação familiar. Muita gente tem parte da família na Europa, parte na Turquia. Ter mecanismos que permtiam que as famílias se reúnam é da mais óbvia humanidade. Com o desenvolvimento desses mecanismos legais, diminui-se muito as oportunidades para a actuação destes grupos de "gangsters", que são os que oferecem estes serviços. Verdadeiramente trata-se de um tratamento indigno das pessoas, mas oferecem a oportunidade às pessoas de, com todos os riscos e com todas as violações dos seus direitos, chegar à Europa.

Em Portugal, foi criada a Plataforma de Apoio aos Refugiados, que pretende coordenar a resposta da sociedade civil. Que conselhos têm a dar às instituições e famílias que se disponibilizam para acolher refugiados?
Não tenho conselhos a dar, só tenho que exprimir a minha enorme satisfação por ver a sociedade civil portuguesa, tal como as outras, assumir a liderança e mostrar aos governos o caminho que eles próprios têm de percorrer. Agora, vai ser preciso organizar devidamente as coisas e não é fácil integrar pessoas de lingua diferente, de cultura diferente. Há todo um conjunto de precauções e de medidas a tomar, mas pelo que tenho visto - ainda ontem estive a ver com cuidado o website da Plataforma - há uma consciência muito clara do que é preciso fazer e uma vontade muito grande de agir com toda a correcção e toda a eficácia e só desejo o maior êxito a todas estas iniciativas. E também aos poderes públicos, tanto a nível central como local, que se associem à cociedade civil para que aqueles sírios que venham para Portugal possam sentir-se bem na sociedade portuguesa e possam reconstruir aqui as suas vidas.