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"Vitória de Poroshenko na Ucrânia agrada à Rússia"

24 mai, 2014

Este domingo há eleições presidenciais na Ucrânia. "O próximo Presidente tem de ser capaz de gerir o diferencial de relações a Leste e a Ocidente", diz Maria Raquel Freire, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais.

Os ucranianos votam, este domingo, nas eleições presidenciais, depois de uma longa campanha eleitoral iniciada em Março e perturbada pela tensão no Leste.

O oligarca Petró Poroshenko é o grande favorito. As sondagens atribuem-lhe clara vitória à primeira volta. Poroshenko prometeu maior autonomia para as regiões, referendos locais e a normalização das relações com a Rússia em menos de três meses.

A ex-primeira-ministra Julia Timoshenko está muito longe do empresário, não superando os 15% nas intenções de voto.

Na análise da investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) Maria Raquel Freire, "a vitória de Poroshenko, um moderado, pode até agradar a Moscovo no sentido de uma lógica pragmática do Kremlin". A subdirectora da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra diz esperar que as eleições "sejam uma oportunidade de alterar o curso dos acontecimentos".

Freire assina com Patricia Daenhnhardt o livro "A Política Eterna Russa no Espaço Euro-Atlântico", que será apresentada esta segunda-feira, em Lisboa.

"As relações entre a Rússia e o Ocidente esfriaram, mas há indicadores de uma procura constante de entendimento", diz.

Onde é que este livro tenta chegar?
O livro resulta do trabalho de várias escolas de Verão. É importante referir isto porque responde à questão do tema das relações da Rússia com o Ocidente não sair nunca da agenda. De facto, desde o final da Guerra Fria, acabou por nunca sair da agenda.

Vive-se um ponto da história em que dinâmicas de competição se sobrepõem claramente às de cooperação?
Essa parece ser a leitura mais imediata no momento que atravessamos. Mas sou sempre cautelosa na forma como enquadro estas questões. De facto, a competição tem marcado as relações da Rússia com o Ocidente – Estados Unidos e União Europeia – mas não significa necessariamente que não continue e existir diálogo e, especialmente num plano intermédio, haja uma série de comissões a trabalhar em permanência. Portanto, há canais abertos que discutem temas económicos, comerciais e políticos.

George Friedman, presidente da Stratfor, considerada a CIA "não-oficial" um dos responsáveis pelo regresso da geopolítica ao centro do debate nos Estados Unidos, defende que a crise Rússia/Ocidente não pode ter grelhas de leitura morais. Friedman afirma que Putin quer estabilizar a Ucrânia como almofada, os alemães querem proteger as importações de gás natural e os Estados Unidos não se envolvem sem aliados. Isto é geopolítica.
É uma leitura muito interessante porque o regresso da geopolítica é uma questão que tem estado muito em cima da mesa e ajuda a compreender algumas das dinâmicas do momento. Contudo, não podemos reduzir toda a análise a uma grelha geopolítica e a encontros e desencontros de alinhamentos de poder. Há aqui outras dimensões que devem ser levadas em conta. Um dos exemplos tem a ver com o desenvolvimento das parcerias estratégias que foram acordadas entre a Rússia e a União Europeia, a Rússia e a NATO, Rússia e Estados Unidos que acabaram por ser muito ambiciosas nos objectivos, mas nunca consolidaram uma verdadeira relação de parceria.

Friedman defende que a crise na Ucrânia é sobretudo uma questão europeia. Envolver os Estados Unidos desvia o foco porque foi a debilidade militar e institucional da Europa, somada às intenções de atrair Kiev a Bruxelas, que reforçou a Rússia de Putin. A Europa deu a Putin o pretexto para aumentar poder e influência?
Sim. Sim, no sentido em que se chegou a uma situação em que quase não havia escolha. A Ucrânia foi desenvolvendo uma política multivectorial com Bruxelas e com a Rússia em que procurava adequar os interesses das suas relações com Moscovo e com a União Europeia. Na altura em que é proposto o acordo de associação com a União Europeia e a Rússia está a desenvolver o seu conceito de união euroasiática – que, num certo sentido, colide com o primeiro – a Ucrânia é encostada à parede no sentido de ter de fazer uma opção: a Europa ou a Rússia.

Face à incapacidade institucional de Bruxelas em apoiar a Ucrânia economicamente, a Rússia aproveita a oportunidade de acautelar que a Ucrânia não saia definitivamente da sua área de influência. A Rússia reage de imediato e aproveita para marcar a posição de que não está de acordo com o maior envolvimento da Europa nesta área de "vizinhança partilhada". Designação que não é do agrado de Moscovo por ser uma área que a Rússia considera de influência directa e consolidada.

As eleições presidenciais na Ucrânia deverão alterar dados fundamentais dessa equação?
Espero que as eleições sejam uma oportunidade de alterar o curso dos acontecimentos. Petró Poroshenko é considerado um líder pragmático e capaz de dialogar quer com Moscovo, quer com a União Europeia. É catalogado como pró-europeu, mas também reconhece que a Rússia é um parceiro com quem se pode dialogar. Espero que com estas eleições se dê consistência ao chamado esforço de diálogo nacional e a um possível acordo que permita acolher os vários interesses. O próximo Presidente da Ucrânia tem de ser capaz de gerir o diferencial de relações a Leste e a Ocidente. Não pode ser alguém que vire as costas a um destes lados. A Ucrânia só poderá manter a sua integridade – excepção da Crimeia – numa lógica de gestão cautelosa do seu posicionamento. O perfil de Petró Poroshenko leva-me a ser optimista quanto a este desafio.

Poroshenko pode ser o candidato moderado que, num certo sentido, agrade até a Moscovo?
Diria que sim. Agradar no sentido de uma lógica bastante pragmática. De resto, Moscovo está a também assumir posições mais moderadas. Desde a altura dos referendos no Leste, que Moscovo não reconheceu de forma explícita, a que se seguiu o anúncio de Putin de desmilitarização da fronteira. Conciliando esta atitude russa com a eleição de Petró Poroshenko e a eventual diminuição de actividade dos grupos mais extremistas no Leste, poderemos encontrar aqui algumas linhas mais optimistas quanto a uma solução de futuro – claro, com maior autonomia para as províncias do Leste.

Mas Putin com a política de avanços e recuos, não pretende uma nova Crimeia? A Ucrânia pode ser um estado falhado como a Bósnia?
Não faria essa leitura tão extremada. Não me parece que possa ser do interesse de Moscovo, ou de Bruxelas, que a Ucrânia possa ser um estado falhado. Há uma lógica muito pragmática da parte de Putin. Não se esqueça que a Rússia tem dificuldades económicas Além do isolamento internacional, poderia tornar-se insustentável economicamente e fragilizar a própria política interna russa. Esse não é o objectivo de Putin e, por isso, tenho sido muito crítica dessas análises mais alarmistas apontando para uma Rússia expansionista.

Então Putin não se prepara para um enfrentamento prolongado com o Ocidente?
Diria que não. A leitura é a de que essa atitude de confronto não é a mais conveniente para ambas as partes, Putin e o Ocidente. Lembro, por exemplo, que há uma semana e meia vários CEO de multinacionais de energia com interesses na Rússia aludiam a um "business as usual": ou seja, os negócios prosseguem, continuam a fazer-se normalmente. Este é um exemplo de que há uma série de linhas de interesse e de dependência mútua.

Muitas vezes coloca-se na mesa o quão dependente a Europa é da energia russa, mas esquece-se da extrema dependência russa do mercado europeu, até enquanto bom pagador da sua produção energética. É verdade que há uma "agenda de dificuldades" (a eterna questão do alargamento da NATO é talvez a maior de todas), mas há também um conjunto de outros temas onde há cooperação.