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Conversas Cruzadas

Já há água, mas como obrigar o cavalo a beber?

25 jan, 2015

Portugal pode beneficiar de 28 mil milhões do programa Draghi, mas como fazer passar esse dinheiro para a economia real? Silva Peneda vs Carvalho da Silva

Já há água, mas como obrigar o cavalo a beber?
Portugal pode beneficiar de 28 mil milhões do programa Draghi, mas como fazer passar esse dinheiro para a economia real? Silva Peneda vs Carvalho da Silva.

A imagem vagamente keynesiana já citada por Daniel Bessa, no Conversas Cruzadas, tem agora livre adaptação: “podemos levar a água (leia-se: dinheiro) à boca do cavalo, mas não podemos obrigá-lo a beber (leia-se: investir)”.

Sendo o exemplo original usado na década de 60 - por um professor do antigo ministro da economia - “Podemos levar o cavalo à fonte, mas não podemos obrigá-lo a beber”,  volta a estar actual na análise à eficácia de medidas como o “quantitative easing” decidido, na quinta-feira, pelo BCE.

No combate à deflação e na promoção do crescimento, Silva Peneda e Manuel Carvalho da Silva convergem no Conversas Cruzadas: o Banco Central Europeu (BCE) não pode fazer tudo sozinho. Na zona euro, os estados e a Comissão Europeia terão de fazer a sua parte.

Silva Peneda identifica um factor chave. “Nada se resolve sem o factor confiança. O investimento depende da confiança dos investidores. Podemos ter as medidas políticas com todas as boas intenções e, como afirma o professor Bessa na história do cavalo e da água, podemos levar a água – leia-se dinheiro – à boca do cavalo, mas não o podemos obrigar a beber”.

E como provocar sede ao cavalo?  Silva Peneda responde à metáfora equestre. “Aí temos de voltar à minha tese de como se cria um clima de confiança que fomente o investimento. Ou seja, o tal plano a 10 anos, uma estratégia para o país, um compromisso entre os parceiros sociais e o poder político. Isso é que pode conferir confiança” afirma o – ainda - presidente do Conselho Económico e Social.

“Sem uma estratégia de médio prazo não se cria valor nem se cria riqueza. Tudo vai desembocar numa questão essencialmente política que tem a ver com a estabilidade, uma orientação clara quanto ao futuro, limando também muitos pontos a ser resolvidos no plano europeu e que podem contribuir para essa estratégia” indica o antigo ministro do Emprego.

A zona euro vai poder lucrar com a anunciada injecção de liquidez do BCE com as compras de dívida a chegarem ais 1,14 biliões de euros. No caso nacional, o BCE pode ficar com 28 mil milhões de dívida pública e privada.

“Não era difícil prever este cenário” sustenta Silva Peneda observando a decisão da equipa de Mário Draghi. “Como diziam todos os participantes da Quadratura do Círculo da Sic, os últimos quatro anos foram de perda de valor”, afirma o economista.

“Portanto, quem analisa a evolução económica da zona euro facilmente chegaria à conclusão de que a política que vinha sendo seguida não era a mais adequada. Estas decisões do Banco Central Europeu (BCE) também têm de ser vistas como a resposta a uma situação que era desconfortável” indica Silva Peneda.

Já Manuel Carvalho da Silva, projectando o futuro, confere alguma transcendência ao regresso da política pura. “Com esta medida do BCE, de facto, passamos para um patamar mais elevado de exigência de medidas políticas no plano europeu. De compromisso geral se quisermos ter uma verdadeira União Europeia ou teremos de enfrentar a desagregação” afirma.

“Cada passo que se dá aproxima-nos da tal hora da verdade, também neste aspecto. Ou há solidariedade e consciência das diferenças e se actua em função do todo, mas também das condições diferenciadas - e há uma acção política no plano dos países e no plano da União Europeia - ou, então, vai-se cavando o fim deste projecto” indica o professor da Universidade de Coimbra.

Carvalho da Silva:  “dinheiro pode ser usado na especulação financeira”
Mas como vai chegar o programa Draghi à economia portuguesa e, em última análise, à vida do cidadão comum? É na banca nacional que reside o sucesso do programa? Manuel Carvalho da Silva enuncia reservas.

“Normalmente os grandes accionistas dos grandes grupos da economia real – aqueles que influenciam a economia real – são também detentores de posições na economia especulativa. Esta contaminação é um problema muito complexo.”

“Ou seja: o dinheiro vai chegar aos bancos, mas pode demorar até estar disponibilizado, às empresas que dele necessitam para investir gerar dinâmica económica e investimento. Entre esses dois momentos muita coisa se pode passar” afirma o sociólogo.

“E temos um segundo conjunto de factores. Como é que os países se vão relacionar entre si? Até agora não há sinais fortes de coesão á volta da medida no plano europeu. Donde, o dinheiro pode chegar à banca e grande parte dessa verba ser canalizado para a especulação e, nesse contexto, a circulação também pode ser feita entre bancos de vários países e o peso, o poder de cada estado é muito diferenciado”.

“Pode gerar-se aqui um conjunto de situações que contribuam muito mais para a desagregação da já frágil coesão da União Europeia que tudo o resto. Até porque, sabemos, os sistemas de regulação não funcionam. Se funcionassem não havia offshores e tudo o resto”, diz Carvalho da Silva.

Silva Peneda: “poupanças incentivadas a comprar dívida pública”
José da Silva Peneda aponta soluções e sugere caminhos. O presidente do CES, a meses de assumir formalmente o cargo de adjunto de Jean Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, defende haver espaço para soluções imaginativas e criativas.

“Não, de facto realmente a medida do BCE por si só não resolve todos os problemas, mas há outras soluções. Julgo que tem de haver modificações naquilo que se chama a política orçamental. Temos um tratado orçamental feito numa conjuntura específica. Na economia temos que privilegiar aquilo que chamo de visão gradativa”.

“Temos de adaptar os instrumentos à época e ao tempo. Ora, o Tratado Orçamental foi feito numa época em que a economia crescia, as empresas geravam lucros, tinham resultados muito positivos e, portanto, um bom critério de locação de recursos seria que esse dinheiro se mantivesse na economia privada”.

“Donde, se o estado mantivesse um orçamento expansionista iria retirar recursos ao que era importante para a economia privada. A lógica era compreensível. Mas hoje vivemos num tempo diferente. Totalmente diferente”, afirma Silva Peneda.

“Aqui, há então que actuar em dois domínios. Primeiro: os países que têm uma situação confortável no défice orçamental deviam ter uma política orçamental claramente expansionista. Isso ajudava os países em dificuldades, porque a procura iria aumentar. Isso não é feito. Essa seria uma orientação clara a nível europeu” defende o antigo ministro.

“Outro domínio: em Portugal, a poupança do sector privado – famílias e empresas - atinge 7% do PIB. Ora, o défice só pode ser 3%. Aqueles 4% perdem-se. Nos países com elevadas poupanças privadas a Europa devia fomentar que essas poupanças deveriam ser canalizadas para a compra de dívida pública desses países. Sei que é contra a liberdade de circulação de capitais, mas faria todo o sentido, porque dava folgas orçamentais que poderiam ser aplicadas em medidas de crescimento económico”.

“Portanto, há matéria ainda no plano da política orçamental que ajudem a complementar a decisão do BCE. Mas não podemos pedir que seja o BCE a decidir. Corresponde aos responsáveis políticos.”

“Há aqui ainda espaço no plano da imaginação e criatividade de medidas políticas para ajudar a resolver os problemas dos países da periferia” sustenta, por fim, José da Silva Peneda.

Carvalho da Silva: “Se correr mal, vamos ter mais 28 mil milhões para pagar”
E o risco do programa debilitar o ritmo de reformas tidas como necessárias? E que outros riscos podem comprometer em Portugal o sucesso do plano Draghi?
Manuel Carvalho da Silva elenca reservas e deixa um alerta. “É a imobilidade dos tratados, é a desadequação do tratado orçamental, é a irracionalidade das políticas de austeridade e a não aceitação de estratégias diferentes condicionadas pelo peso dos países e das suas circunstâncias. É tudo isto, mas sejamos objectivos”, afirma o ex-líder da CGTP.
 
“Se a decisão do BCE e esta disponibilidade que, à partida, tem um sentido positivo, correr mal – e tem grandes hipóteses de correr mal – o que nós temos é mais uma factura para pagar. Se o processo vai até ao fim e, depois, corre mal, os portugueses vão ter mais 28 mil milhões de euros para pagar. Não se pode permitir que este seja o caminho” indica Carvalho da Silva.

E como passará a banca esse dinheiro para a economia real? Mira Amaral, presidente do banco BIC disse ao Diário Económico que “o problema não é de liquidez, mas sim de risco de crédito de um conjunto de PME altamente endividadas que não serão financiadas pela banca comercial”. O banqueiro considera que “o programa do BCE não vai resolver o problema dessas empresas”.

Carvalho da Silva amplia a tese. “Muitas empresas – pequenas e médias – têm de resolver os seus problemas de endividamento e outros de bloqueios de contexto. Se não os resolverem, nada adianta. Aí a afirmação de Mira Amaral faz sentido”.
 
“A outra nota é que se o dinheiro não chegar às pessoas, nada feito. Se não houver uma alteração da política salarial e um retomar da valorização dos salários, das pensões de reforma, e de condições que possam gerar a tal confiança e disponibilidade das pessoas para investir, então nada feito.

“Se nada melhorar no desemprego, políticas salariais e à protecção salarial não é possível fazer o milagre que esta semana se anunciava”, refere Carvalho da Silva.
Silva Peneda estende o registo. “Dito de outra forma: é preciso reforçar o papel e importância da classe média no nosso país. Na Europa um país se não tiver uma classe média forte não pode almejar a ser um país desenvolvido” afirma.

Já Carvalho da Silva identifica o combate à exclusão como decisivo. “Na sociedade portuguesa – não tanto como na sociedade grega – essa é uma questão vital, mas há uma dimensão de pobreza e de risco de pobreza que tem de ser endereçada. Se essa situação de exclusão for ignorada não resolveremos o problema” sentencia.

Silva Peneda conclui. “Quando falo em ‘reforço da classe média’ digo ser preciso retirar muita gente da pobreza e incorporar esse conjunto social na classe média. É isso que estou a dizer”