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Adriano Moreira

"A legitimidade de exercício do Governo tem sido bastante afectada"

20 nov, 2013 • Mara Dionísio

Acredita no que Portugal há-de ser, mas está preocupado: com os filhos, com os netos, com o país inteiro. Numa entrevista sobre a crise e a troika, sobre Vítor Gaspar e Paulo Portas, sobre manifestações e a Alemanha, Adriano Moreira considera que há que "prestar atenção aos sinais que traduzem que o Governo vai perdendo a legitimidade de exercício". "O imprevisto está à espera de uma oportunidade", diz.

"A legitimidade de exercício do Governo tem sido bastante afectada"


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Foi ministro de Salazar durante o Estado Novo. Mais tarde, liderou o CDS e foi deputado na Assembleia da República. Atravessou muitas crises, mas esta "é a pior" de todas. Aos 91 anos, Adriano Moreira considera que tem de haver capacidade para confrontar os técnicos da "troika" e lamenta que tenha sido esquecida a carta que Vítor Gaspar escreveu quando se demitiu. Relativamente ao guião apresentado por Paulo Portas para a reforma do Estado, considera que lhe "parece exagerado chamar 'reforma do Estado'" ao documento. Pede aos partidos para se questionarem - "é preciso ver no CDS qual é a presença da doutrina social da Igreja" - e alerta o Governo para os sinais que evidenciam a perda de "legitimidade de exercício": "Não faltam exemplos de distanciamento entre os programas anunciados para as eleições e as medidas tomadas". Ainda assim, e apesar de tudo, acredita: "Lembrem-se que chegámos à Índia sem bússola". 


O relatório do FMI sobre as oitava e nona avaliações ao programa de assistência financeira a Portugal diz que os cortes nos salários e nas pensões são irreversíveis. Depois de tudo o que já aconteceu, o país é capaz de resistir a mais medidas deste cariz?
As autoridades técnicas precisam de ser corrigidas pela capacidade dos estadistas. Os estadistas não têm que ficar nem submetidos, nem pressionados por opiniões dos técnicos: aproveitam as opiniões dos técnicos e exercem a sua responsabilidade e capacidade de estadistas. Penso que nenhum estadista destes países pobres, incluindo o Governo português, pode ignorar que atingimos a fadiga tributária e que essa circunstância não diminuiu de gravidade por índices ligeiros e melhorias sazonais, que não são de futuro assegurado. Têm que prestar atenção aos sinais que traduzem que o Governo, que é legítimo pela eleição, vai perdendo a legitimidade de exercício, porque o desconforto, a desigualdade, a pobreza da sociedade da sociedade civil progridem e isso é uma situação muito perigosa.

Este Governo já perdeu a "legitimidade de exercício"?
Acho que tem sido bastante afectada. E porquê? Não faltam exemplos de distanciamento entre os programas anunciados para as eleições e as medidas tomadas para a execução do Governo. E há a falta de coincidências entre as medidas, os objectivos e os resultados. É evidente que isto não pode deixar de afectar a legitimidade de exercício. Este fenómeno - que é grave - não é exclusivo de Portugal. Em toda a Europa, a legitimidade de exercício dos governos está a ser afectada. Por isso, já começa a haver sinais de reacções, de movimentos de extrema-direita. Por outro lado, invoca-se com frequência que se Portugal assumiu as obrigações que assumiu com a 'troika', então tem de cumprir. Não tenho dúvidas sobre isso. Mas também não tenho dúvidas que tem outras obrigações que tem de cumprir, que são as convenções do BIT [Bureau International du Travail] em relação aos trabalhadores, obrigações assumidas com as Nações Unidas, obrigações assumidas na NATO... E não se pode limitar o país à obrigação da definição do programa feito pela 'troika', que se traduz em resumir o conceito estratégico nacional em Orçamento.

Qual é o conceito estratégico nacional?
Não há. É esse o problema. Não há desde 1974.

Em Julho, Vítor Gaspar demitiu-se do cargo e escreveu uma carta endereçada ao primeiro-ministro admitindo que a receita da austeridade seguida não estava a funcionar. Porquê continuar a insistir na austeridade?
O senhor professor praticou um acto, que deve ser louvado, de integridade académica - declarou que se tinha enganado. Isso é uma coisa que faz parte da ética universitária e deve fazer parte da ética de governantes. Simplesmente essa carta fundamental desapareceu da discussão pública. E, portanto, dá a impressão que se foi embora o ministro, mas ficou a receita. Ele adoptou aquela metodologia convencido de que era a conveniente e depois avisa honestamente 'isto está errado, não conduziu aos resultados que eu imaginava' - é estranho que isso seja posto de lado e esquecido. Não é explicável.

Que propostas alternativas à austeridade é que devem ser colocadas em cima da mesa?
Só conheço uma sede onde podem ser modificadas estas orientações: chama-se Conselho Europeu. Conheço outra sede, que nunca foi experimentada, que é o Conselho Económico e Social das Nações Unidas. E é aí que as coisas têm que ser discutidas. A situação, apesar de algumas certezas que os economistas têm e depois os resultados não correspondem, é a seguinte: juízos de certeza ninguém pode fazer; juízos de probabilidade são uma audácia; e juízos de possibilidade devem ser feitos sempre com a prevenção de que pode acontecer outra coisa. O que me leva a concluir que o imprevisto está à espera de uma oportunidade.

O que é que quer dizer com isso?
Você não pode adivinhar os resultados. O imprevisto está à espera de uma oportunidade.

As manifestações podem tornar-se violentas?
O imprevisto está à espera de uma oportunidade.

Qual é o papel da Alemanha na Europa: é solução ou problema?
Não é novidade que a Alemanha seja um problema. Tivemos duas guerras civis, chamadas mundiais, em que o problema principal foi a Alemanha. E uma condição infeliz da História é que às vezes estas calamidades acontecem por factos sem grande significado. Por exemplo, a primeira grande guerra começou por assassinarem um príncipe: não é assim um grande acontecimento histórico, mas custou 20 milhões de mortos. A segunda guerra começou porque se elegeu um sujeito medíocre para chanceler - custou 50 milhões de mortos. De maneira que nunca podemos saber - por isso é que eu digo que o imprevisto está à espera de uma oportunidade. Há um relatório das Nações Unidas que dizia esta coisa: o mundo está confrontado com duas ameaças - as armas de destruição maciça e a miséria. Estamos a chegar lá.

Neste momento, a Alemanha tem excedente orçamental e foi aberta uma investigação ao excedente externo alemão. Pelo contrário, Portugal tem défice. Porque é que nunca houve superavit na democracia portuguesa? 
Todos os dias você ouve os melhores economistas a discutir isso. Veja se encontra lá uma boa resposta.

Leu o guião para a reforma do Estado?
Li.

O que é que achou do documento?
Parece-me exagerado chamar 'reforma do Estado'. Aquilo não é reforma do Estado - é reforma da administração e do comportamento na administração do Estado. Porque a reforma do Estado implica a estrutura do aparelho do poder e, portanto, implica a redefinição da função do Presidente da República, por exemplo; implica a definição do Conselho de Estado, a redefinição do regime das eleições e um outro aspecto também fundamental: que cada partido trate de redefinir as suas convicções e projectos, porque os partidos nasceram à volta de visões diferentes do mundo e da vida, mas para quando nasceram. Ora, a Revolução foi em 74. Neste momento em que estamos - 2013 -, o mundo é outro. Talvez cada partido devesse redefinir a sua concepção do mundo e da vida.

Como é que vê o CDS nesta coligação?
Devo dizer que não tomo parte em actividades políticas. Portanto, não sei de contratos e negociações. A impressão que dá muitas vezes ao público é que a coordenação não é muito perfeita. Com vários problemas e equívocos em declarações públicas dos ministros. Não vale a pena agravar a situação lembrando-os. Mas eu julgo que aquilo que principalmente inquieta o CDS é que a interrupção do mandato do Governo teria efeitos negativos nas relações que decorrem do acordo feito com a 'troika' e, portanto, com o mercado.

O CDS mantém uma coligação para evitar um mal maior?
Parece-me. A mim ninguém me perguntou.

É essa a sua opinião?
A minha opinião é que é isso. E todos os partidos têm que redefinir a sua concepção do mundo e da vida: é preciso ver no PSD qual é a ainda a presença da social-democracia e no CDS qual é a presença da doutrina social da igreja, que para mim é fundamental. Em todos os partidos, é público que as divergências começam a aparecer honestamente sobre a orientação do mundo e da vida.

Tem vários netos. Tem medo por eles, do futuro deles neste contexto tão difícil?
Tenho 13 netos - a primeira chegou à maturidade esta semana - e tenho seis filhos - uma está a acabar o estágio da ordem dos advogados. A minha inquietação pelo futuro deles é grande.

O que é que lhes costuma dizer?
Isto exactamente que lhe digo a si. Converso com eles, não trato de amenizar as circunstâncias das coisas como as vejo e, naturalmente, eles hão-de encontrar respostas que provavelmente não coincidem com as que eu procurei na vida que me aconteceu viver. Com a diferença de que nós conhecíamos mais da ordem do mundo do que hoje conhecemos. As interrogações são inúmeras, vemos a nossa juventude mais qualificada a emigrar e cada vez que os mais qualificados emigram, a circunstância do país piora. E eu vou-lhe dizer porquê: cada vez que a ciência e a técnica avançam, é preciso mais gente altamente qualificada, mas menos gente para trabalhar. A sociedade tem que se organizar de outra maneira.

Ao longo destes 91 anos atravessou várias fases da vida pública portuguesa, atravessou muitas crises. Recorda-se de alguma que tenha comparação com esta?
Não. Acho que é a pior crise que o país atravessou até hoje. Os desafios são tremendos e eu creio que é o próprio Ocidente que está em perigo. Vou publicar um livro, que se chama 'Memórias do Outono Ocidental - Um Século Sem Bússola'. Para animar os portugueses, digo que, apesar de tudo, lembrem-se que chegámos à Índia sem bússola.