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Um guião mais brando e vago do que o relatório do FMI

31 out, 2013 • Pedro Rios

Haverá cortes, mas poucos são quantificados. Em Janeiro, o FMI fez várias propostas, mas quantas estão no guião da reforma do Estado?

Um guião mais brando e vago do que o relatório do FMI

O ano começou com um relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI), feito a pedido do Governo, repleto de sugestões para reformar – ou, na linguagem política da altura, “refundar” – o Estado. Os caminhos eram múltiplos, os resultados sempre dolorosos, os objectivos claros: cortar quatro mil milhões de euros à despesa pública. Dez meses depois, o “guião” para a reforma do Estado põe (quase todos) os números de lado e procura provar que “reformar é diferente de cortar”.

“Não há qualquer possibilidade de reduzir a despesa pública sem ter impacto nos salários das administrações públicas e nas aposentações do Estado”, admite o documento “Um Estado Melhor”, divulgado esta quarta-feira pelo vice-primeiro-ministro, Paulo Portas.

Mas o texto não quantifica quanto é que o Governo quer reduzir em salários e pensões, enquanto o FMI admite cortes de 3 a 7% na base salarial dos trabalhadores do Estado e “um sistema progressivo de reduções” nas pensões como forma de evitar um corte generalizado de 10%.

“A dimensão do Estado é uma escolha política”, dizia o relatório do FMI, que argumenta, porém, que “países com estados pesados estão habitualmente associados a um baixo crescimento”.

O novo documento, que o Governo quer que sirva de guião da reforma do Estado nesta e na próxima legislatura, alinha pela mesma ideia: “um Estado forte não é um Estado pesado”. E tem um lema: “Nem estatização, nem Estado mínimo”.

Prudência
O texto de 112 páginas aprovado quarta-feira pelo Conselho de Ministros é um documento mais virado para o “fomento” da economia do que o relatório do FMI, que apontava quase exclusivamente baterias para os cortes em áreas como a Segurança Social, a educação e a saúde, onde se concentra grande parte da despesa.

Na Segurança Social, o FMI alertava para a diferença da “pensão média” da Caixa Geral de Aposentações face à do sistema geral. Os cortes, diz o relatório, são inevitáveis, bem como o aumento da idade da reforma para os 66 anos. O subsídio de desemprego é, para o FMI, “relativamente alto” e longo.

Neste domínio, o Governo é mais “prudente” (adjectivo usado por Portas na apresentação do guião) e promete montar, em 2014, uma Comissão de Reforma da Segurança Social para lançar as bases de uma mudança no sistema a aplicar apenas quando o crescimento do PIB atingir 2%. “Deve debater-se um valor máximo para as pensões que o Estado paga”, uma proposta que o FMI também apresentou. E pouco mais se diz no guião sobre apoios sociais.

Na educação, o Fundo Monetário Internacional elegia os professores como um “grupo relativamente privilegiado” em Portugal e onde há “emprego excedentário” – “redundâncias” também visíveis nas forças de segurança, na linguagem fria dos técnicos. Uma reforma “pouco ambiciosa” implicaria a saída de 50 a 60 mil trabalhadores, docentes e não docentes, das escolas.

O documento coordenado por Paulo Portas também diz que a rede escolar não pode “ficar intacta quando há um decréscimo do número de alunos”. Mas, em vez de falar em encolhimentos massivos do quadro de pessoal, propõe novos modelos: autarquias a gerirem novos ciclos de ensino, que não apenas o básico, como acontece hoje; reforço dos contratos de autonomia; e, novidade, a criação de “escolas independentes”, detidas e geridas pelos professores.

O FMI foi mais vago. Propunha ao Governo “tornar o sistema de ensino mais flexível”, “limitar o papel do Estado” nesta área e fazer com que o “dinheiro vá atrás do estudante” (ou seja, o cheque-ensino).

O cheque-ensino está no guião da reforma do Estado, como “instrumento de reforço da liberdade de escolha das famílias”, mas a sua implementação deve seguir “um método prudente e gradual, assente em projectos-piloto”.

Ainda na educação, o guião diz que o Governo quer “criar, com início em 2015, um novo modelo de ensino superior de ciclo curto, muito próximo da realidade do mercado de trabalho”. Mas não dá mais pormenores.

Na saúde, o FMI preocupava-se com o “elevado pagamento de horas extraordinárias” a médicos e com a profusão de subsistemas, que gera “ineficiências”. As taxas moderadoras ainda podem subir, defende o organismo internacional.

Sobre aumentos dos custos da saúde, o guião do Governo nada diz. Defende a “gestão coordenada” da ADSE com o SNS e, sem concretizar, o aumento da “eficiência, sem comprometer a efectividade, na prestação dos cuidados de saúde”.

“Menos funcionários, mas mais bem pagos”
O Governo quer uma administração pública com um modelo "que tenha menos funcionários, mas mais bem pagos", disse, quarta-feira, Paulo Portas. Mas o ministro não explicou como. O documento também não esclarece: diz apenas que se irá "dar prioridade à procura de um consenso sobre o melhor procedimento legislativo que permita, em circunstâncias objectivas, flexibilizar o vínculo do trabalhador em funções públicas com o Estado".

O FMI foi mais claro. “A estrutura salarial relativamente horizontal é dispendiosa e afecta a captação de talento. Reformar os escalões de vencimento é um elemento chave da reforma das compensações”, escreviam os técnicos. Receita: privilegiar desempenho “em detrimento da antiguidade.

Num aspecto, o Governo vai mais longe do que o FMI: quer inscrever na Constituição a “regra de ouro” da disciplina orçamental (défice estrutural inferior a 0,5% ao ano, dívida pública inferior a 60% do PIB), acertada a nível europeu. E, no próprio guião, dá recados ao PS: “A demagogia é (…) incompatível com as regras de pertença de Portugal ao euro”.