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Estranhos numa terra estranha

13 mai, 2013 • Ricardo Vieira

Chamam-lhes os pioneiros da emigração portuguesa no Canadá e têm seis décadas de histórias de trabalho duro para contar. Quando chegaram estranharam uma língua que não compreendiam, hábitos e cenários diferentes. Se fosse hoje, voltavam a embarcar.

Estranhos numa terra estranha

Nasceram no continente e nas ilhas, num país onde não cabiam os sonhos e as ambições de portugueses que queriam mudar de vida, ver o mundo, partir. Manuel Vieira, 86 anos, António "Ponta Delgada", 90 anos, Gabriela Vita Pereira, 85, são pedaços de história viva, pioneiros da emigração portuguesa no Canadá, iniciada oficialmente há seis décadas.
 
Natural de São Miguel, nos Açores, Manuel Vieira, então com 24 anos, fez parte do primeiro grupo de emigrantes portugueses a pisar solo canadiano. Cruzaram o Atlântico a bordo do navio "Saturnia" e chegaram a Halifax na noite do dia 12, mas só tocaram terra a 13 de Maio de 1953. "Sempre tive esta vocação de embarcado e isso um dia calhou-me", conta Manuel Vieira, que começou a trabalhar numa quinta de tabaco na região do Quebec a troco de 40 dólares por mês.
 
Já António "Ponta Delgada", como gosta de ser tratado, sonhava com o Brasil. Mas viu um anúncio, candidatou-se e chegou ao Canadá poucos dias depois de Manuel Vieira, a 26 de Maio de 53. Em Portugal ficaram a mulher e três filhos, que lhe seguiram as pisadas mais tarde. Quando recua 60 anos, este madeirense da freguesia de Ponta Delgada recorda que a viagem de barco de seis dias "foi linda e muito boa", apesar de a temperatura "fazer bater o dente". A bordo dizia-se, em jeito de brincadeira, que "se no Canadá estiver assim frio, não saímos do barco, têm que nos levar para trás".
 
Os primeiros tempos de António na terra nova também foram passados a trabalhar na agricultura e marcados por dificuldades antigas. Diz que durante a II Guerra Mundial havia falta de comida na Madeira, mas nunca passou "tanta fome" como quando chegou ao Canadá. Começou por receber 65 dólares por mês numa quinta, depois foi para um restaurante de Toronto onde ganhava melhor e também esteve numa fábrica onde chegou a trabalhar mais de 100 horas por semana.

"Os primeiros tempos foram muito reles, mas agora está tudo bem, tenho a minha vida boa, tenho uma casa de um milhão e meio de dólares. Eu sou um milionário", congratula-se o emigrante português.
 
Gabriela Vita Pereira nasceu na Madeira. Tem 85 anos e foi para o Canadá com 25, um ano depois do marido Óscar Pereira ter emigrado. O primeiro aniversário do filho foi passado no barco entre Lisboa e Halifax, em 1954. "Os primeiros tempos foram dolorosos e foi assim por muitos anos." Mal chegou, arregaçou as mangas e começou a alinhavar um novo futuro a trabalhar em costura. Mas também havia tempo para passear e para festas. "Saímos muito. Tivemos 'very good times'", conta Gabriela, num misto de português e inglês.
 
Subtilezas linguísticas e Portugal "só para passear"
A barreira linguística foi um dos muitos obstáculos que os pioneiros portugueses foram aprendendo a ultrapassar num Canadá onde as línguas oficiais são o inglês e o francês. António "Ponta Delgada" explica que quando chegou ao outro lado do Atlântico nem "sabia pedir um copo de água" em Inglês, mas com a ajuda dos patrões e de um pequeno dicionário foi conhecendo novas palavras. Não sem algumas peripécias e confusões de tradução pelo meio, como quando percebeu que a sonoridade da palavra portuguesa "faca" pode assemelhar-se a um palavrão na língua de Shakespeare.
 
"Não sabia pedir um copo de água, mas a patroa ensinava-me muito lá no 'farm' e ela também queria saber português. Ela mostrava-me o prato, as colheres e pedia-me para dizer em português. E quando chegou ao lugar da 'knife', eu disse 'faca' e ela e o marido olharam para mim com uma cara... Eu tinha comprado um dicionário pequenino, fui buscá-lo e vi que faca era uma má palavra [em inglês]. Mostrei-lhes [o significado] no dicionário e eles começaram a rir", recorda António "Ponta Delgada".
 
Já Manuel Vieira confessa que ainda hoje não fala bem inglês. "Chegámos aqui e fomos trabalhar. Não havia tempo para ir à escola." Logo nos primeiros tempos de Canadá, e se não fosse a ajuda de um polícia emigrante brasileiro que encontrou por acaso numa rua de Montreal, provavelmente não teria conseguido levantar o cheque de 80 dólares com os primeiros dois meses de ordenado.

Manuel Vieira, António "Ponta Delgada" e Gabriela Vita Pereira emigraram há décadas e ficaram pelo Canadá. Regressar a Portugal "só para passear", diz António. "Com os actuais problemas de Portugal, voltava a sair", refere Gabriela.

E que conselhos dão estes pioneiros a quem queira emigrar, por exemplo para o Canadá? Gabriela Vita Pereira lembra que a crise é mundial e que é aconselhável já ter "trabalho certo" no país de acolhimento antes de partir. 

Manuel Vieira deixa o seu testemunho às novas gerações. "Isto aqui sempre está melhor que lá [em Portugal], para falar verdade. Mas se eles vêm para cá, muitos deles têm vindo e vão-se embora - aqui trabalha-se. Eu nunca trabalhei tanto na minha vida como aqui."