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Entrevista

Paul de Grauwe: "Bruxelas tem medo da Alemanha e vinga-se em Portugal"

08 out, 2014 • João Carlos Malta

Previu a crise na Zona Euro. Diz que a postura crítica da Comissão Europeia face ao aumento do salário mínimo “é totalmente inaceitável”. Em entrevista, Paul de Grauwe, um dos economistas mais conceituados da Europa, critica os “dogmas” que lideram a Europa e arrasa as privatizações feitas ao desbarato.

Paul de Grauwe: "Bruxelas tem medo da Alemanha e vinga-se em Portugal"
Paul De Grauwe , economista e professor , durante a conferência Afirmar o Futuro , Gulbenkian
Paul de Grauwe é um dos economistas mais conceituados na Europa e um dos que melhor anteviu aquilo que aconteceu durante esta crise. O belga, que foi conselheiro de Durão Barroso na Comissão Europeia, esteve em Portugal esta segunda-feira. Na conferência "Afirmar o Futuro – Políticas Públicas para Portugal", na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, defendeu que a crise na Zona Euro ainda não terminou e que é necessário haver alguma reestruturação da dívida.

Em entrevista à Renascença, o professor da London School of Economics mostra-se muito crítico do directório que existe na Europa e que a governa por "dogmas". Aponta também para o perigo do sistema de governação europeia estar sustentada em pressupostos não democráticos, com a preponderância excessiva de instituições como o Banco Central Europeu ou a Comissão Europeia que tomam decisões para as quais, diz, não têm legitimidade popular.

Em relação a Bruxelas aponta mesmo o dedo: é fraca com os fortes e forte com os fracos.

No actual contexto, vê alguma possibilidade de haver um crescimento sólido e sustentável na Europa?
Infelizmente, as perspectivas não são muito boas. Muitos países estão presos por dogmas, especialmente os do Norte. Mas há outros países que precisam de investimento em infra-estruturas para o sector energético e ambiente, e simplesmente não o fazem. Acho que esta devia ser a prioridade. Devíamos parar de discutir reformas estruturais e investir. E isso irá criar muito melhores perspectivas de crescimento para a Europa.

Afirmou que o BCE, na relação que mantém com os governos, exerce uma posição de supremacia. Estamos a construir uma Europa em cima de uma estrutura pouco democrática?
Isso é um dos grandes problemas na Europa. Nos últimos anos, abdicámos de muita soberania que foi transferida para entidades burocráticas, ao invés de a passarmos para instituições políticas com total legitimidade. Transferimos soberania para o Banco Central Europeu e para a Comissão Europeia, mas estas são instituições com burocratas e que têm muito pouca legitimidade.

Deixe-me usar a Comissão como exemplo: ela pode agora obrigar os países a aumentarem impostos ou a reduzir os gastos. No entanto, não vão ser eles a suportar os custos políticos destas medidas. Essas pessoas vêm para casa depois de obrigar o Governo português a subir impostos.

Mas como podemos mudar esse equilíbrio de poderes?
Isso tem de ser mudado. Os que tomam decisões têm de enfrentar os custos dessas decisões. Há um ponto muito importante na democracia: não há impostos se não houver representação. Se a Comissão obriga os governos a aumentar impostos, então os votantes devem poder votar contra quem toma estas decisões. Mas não podem: apenas o fazem contra o Governo. A estrutura está mal, todos somos a favor de mais integração, mas só se for de uma maneira democrática. Não da forma como está a acontecer agora. 

OAs medidas económicas que estão a ser seguidas na Europa vão levar ao crescimento de movimentos políticos radicais? Temos visto o seu crescimento eleitoral em quase todos os países europeus...
Isso é verdade e tem a ver com esta forma de governo da Europa. As pessoas sentem que as decisões estão a ser tomadas e que não têm controlo sobre elas. Estamos a falar de medidas que são extremamente prejudiciais, que passam por impor uma extrema austeridade e que criaram muito desemprego. As pessoas rejeitam esse modelo. Foi-lhes dito que estas políticas seriam o céu na terra, mas para muitos foram o inferno.

No início deste processo de resgates, depois da pressão dos mercados sobre a Europa do Sul, houve uma preocupação da Irlanda em dizer que não era a Grécia, de Portugal que não era nem a Irlanda, nem a Grécia, e, por fim, a Espanha que afirmava não ser nenhum dos três. Por que é que estes países actuaram desta forma, ao invés de tentarem juntar as suas forças?
Estou sempre a dizer que os países não sabem cooperar entre si. Os países do Sul podiam ter juntado forças para lutar contra o Norte, mas tiveram medo. Provavelmente, não confiavam uns nos outros e não foi possível juntarem forças. É lamentável.

Mas tinham medo de quê?
Acho que tiveram medo dos mercados, que são muito poderosos. Os governos estavam com medo de serem novamente atingidos pelos mercados e quiseram mostrar-lhes desesperadamente como eram bons e como eram diferentes.

É conhecido como um defensor da reestruturação da dívida pública. Para o Governo português é algo que está completamente fora de questão. Que consequências haverá, no seu entender, se Portugal não seguir esse caminho?
As consequências serão mais 20 anos de austeridade e continuar aquilo que têm feito nos últimos cinco ou seis anos. Não é uma perspectiva agradável.

As pessoas conseguirão lidar com isso?
Tenho as minhas dúvidas. Vemos que, no passado, há situações em que Estados que passaram por situações semelhantes tendem a destabilizar-se. É o que tenho medo. Não estou a dizer que vá acontecer em Portugal, mas acontecerá noutros países e talvez em Portugal.

Defende que seria benéfico para Portugal sair da zona euro. Como seria o dia a seguir para o cidadão comum?
Claro que é uma alternativa.

Boa?
Espero que se possa evitar. Sinto que, em algumas situações, quando a união não é saudável, é melhor sair dela. Mas seria traumático. Isso iria destabilizar o sistema bancário e detonar ondas de choque ao nível político. São coisas que não controlamos muito bem. Não sabemos o que irá sair de tudo isto. Mas para evitar isto temos de seguir em frente e criar instituições que possam criar uma zona euro sustentável.

No ano passado lançou a questão: "Por que é que os portugueses têm de continuar a fazer sacrifícios?" E respondeu que tal é insustentável se o objectivo for pagar a dívida ao Norte rico. Mas faz sentido que sejam os contribuintes desses países a pagar os nossos défices?
Bem [pausa]… quando Portugal e outros países da Zona Euro acumulam dívida, isso significa que os outros estão a acumular lucros. É preciso dois para dançar o tango e se há dívidas insensatas também há credores insensatos. As consequências devem ser partilhadas porque as responsabilidades também o são. Não se pode dizer que houve um incumprimento de Portugal sem dizer que também houve falta de responsabilidade dos credores.

Depois de quase quatro anos de discussão, o Governo e os parceiros sociais subiram em 20 euros o salário mínimo. Mas logo a Comissão Europeia disse que a medida teria de ser analisada e colocou-lhe muitas reservas. O que lhe parece esta atitude de Bruxelas?
É totalmente inaceitável. Estou surpreendido que a Comissão Europeia tenha feito isso. A Alemanha aprovou a criação de um salário mínimo e não me lembro de ouvir nada da Comissão no sentido de dizer ao Governo alemão que não devia fazer isso. Por que é que então o fazem com Portugal? Não faz sentido. É vossa decisão fazê-lo e a visão de Bruxelas da economia pode não ser a correcta.

Estão a ser fortes com os fracos e fracos com os fortes?
Exactamente. Há duas questões. A primeira tem a ver com modelos. A Comissão acredita que os salários mínimos são maus, mas não há nenhum tipo de consenso entre os economistas sobre isso. Há até muitos estudos empíricos que dizem que há salários mínimos que são bons para a economia. Por que é que a Comissão Europeia pega num modelo e desvaloriza os outros? A segunda questão é que os alemães introduzem um salário mínimo e a Comissão não diz nada. Isto porque tem medo do Governo alemão, mas não tem medo do Governo português. E, como tem medo do Governo alemão, vinga-se no Governo português.


Portugal "devia ter batido com a mão na mesa". Foto: Joana Bourgard

Portugal acordou com a troika iniciar um processo massivo de privatizações. É extremamente necessário vender activos públicos quando a economia de um país está débil?
Será sensato vender empresas públicas? Nuns casos sim, noutros não. Depende da sua natureza. A outra questão tem a ver sobre o momento de o fazer e se vale a pena avançar quando a economia ainda não recuperou e o seu valor é baixo. Não me parece. É melhor fazê-lo quando a economia está de novo a recuperar e o preço pode ser mais alto. O Governo pode assim ganhar mais dinheiro com a venda. Mas, mais uma vez, esses estrangeiros, a troika, impuseram coisas sabendo da fraqueza do país. As privatizações não têm nada a ver com os problemas de Portugal que são de crescimento baixo, devido a uma procura também diminuta.

Mas o nosso Governo estava em posição de dizer não?
Penso que sim. Devia ter batido com a mão na mesa e dito: "Não, não fazemos isto".

Há quem pense que este período da troika em Portugal serviu apenas para duas coisas: avançar com privatizações e reduzir custos laborais. Foi assim?
Como disse, as privatizações não têm nada a ver com os problemas que Portugal sofre hoje em dia. É uma ideologia que a Comissão impôs sem legitimidade. No que diz respeito aos custos laborais, há um problema de produtividade em Portugal que tem de ser melhorado, mas isso é apenas uma parte. A questão é: como é que se sai desta situação económica em que há um contínuo crescimento lento?

Defende que a austeridade matou a economia portuguesa por muitos anos. O que podemos fazer para a necessária ressurreição?
Isso será difícil, porque estão muito dependentes do que acontece na Europa. Os portugueses e o Governo precisam de começar a investir, há uma grande necessidade de investimento neste país, estimulando o investimento público e privado. A primeira prioridade devia ser o investimento.

Isso é possível com as regras do tratado orçamental europeu?
Pois, esse é um problema que tem a ver com os dogmas que lideram a Europa. Um deles é de que não pode haver investimento se houver dívida. Mas as empresas estão sempre a investir quando têm dívida. Se se seguisse a ideia de que só se pode investir os lucros, então não haveria crescimento.


"Países do Sul podiam ter juntado forças para lutar contra o Norte, mas tiveram medo". Foto: Joana Bourgard

Teve no passado uma expressão curiosa: o capitalismo devia ser salvo dos capitalistas. Não é um paradoxo?
Falava dessa questão quando me referia ao crescimento das desigualdades, que agora se tornou tão intenso que está a criar problemas ao capitalismo. As pessoas não estão a aceitar um sistema que caminha por uma via tão desigual. O que quer dizer que um grupo pequeno de pessoas tem um poder enorme e está a minar as bases da democracia e também dos mercados. Neste sentido, estes capitalistas estão a destruir o capitalismo a longo prazo.

Vimos muitos economistas a prever o futuro nestes anos, mas arriscaria dizer que a maioria falhou as suas previsões. As pessoas podem continuar a confiar neles?
Os economistas fizeram muitos erros, claro. Não deviam fazer isso porque é muito difícil. Se o fizerem sistematicamente, há uma grande probabilidade de errar e perderão reputação. Isso é um problema. O outro é que muitos estão a usar maus modelos económicos.