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“Prevenção da violência tem de começar na creche”

18 fev, 2015 • Raquel Abecasis

Dirigente de várias associações contra a violência, Margarida Medina Martins, diz que quando se começar a fazer prevenção a sério, a violência familiar vai ter muito mais visibilidade.  

Margarida Medina Martins tem uma vida dedicada aos Direitos Humanos. É vice-presidente da Associação de Mulheres Contra a Violência, da Associação Portuguesa para a Prevenção e Abuso de Crianças e presidente da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres.

Vários cargos para a mesma causa: lutar contra a violência, seja contra mulheres ou crianças. Para ela, é uma questão de direitos humanos.

Em entrevista à Renascença, aponta o atraso de Portugal na prevenção da violência, que, diz, tem de começar na creche. Lamenta que as crianças nunca tenham sido uma prioridade na agenda política.

"Quando começarmos a trabalhar a sério na prevenção e a ir bem mais fundo, vamos apanhar crianças que são espancadas, que são maltratadas, que vivem em sítios cheios de violência, que são negligenciadas, que são abusadas sexualmente, vítimas de incesto... A dimensão vai ser muito assustadora", alerta.

A semana passada foi lançada a campanha "Quem te ama não te agride" para a prevenção contra a violência no namoro. São já dois anos destas campanhas e, apesar disso, há um estudo que diz que um em cada quatro jovens já foi vítima de agressão. O que está errado aqui?
Não diria que está errado, o que estamos é a observar melhor é a realidade portuguesa.

É claramente identificado ao nível dos jovens já uma dimensão de violência muito preocupante, o que significa que não nasce ali. Esta tomada de consciência do país de que há muita violência de género já ao nível dos jovens tem de fazer recuar o esforço que o país está a fazer no sentido da prevenção. É muito importante que haja estas campanhas, mas se queremos de facto fazer prevenção temos de ir muito mais cedo, ao nível do primeiro ciclo, às creches, começar a trabalhar aspectos que são fundamentais.

A violência aprende-se, não é uma coisa que nasça com a pessoa, é um comportamento aprendido, o que significa que as escolas terão de ser envolvidas e isso está previsto em instrumentos internacionais para fazer um trabalho que não pode ser uma coisa extra aos currículos, mas tem de ser qualquer coisa estruturante da própria criança. O que vai surgir aí? A violência familiar vai ter mais visibilidade.

As crianças que assistem a isso em casa, mais facilmente se apercebem…
E vão denunciar isso, vão partilhar isso. Assim como vão também partilhar os seus próprios maus tratos, que é uma coisa a que ninguém quer dar nome em Portugal. Saiu há um pouco tempo um documento europeu, na área da violência contra as crianças... o tema nem é bem esse, é a automutilação, o suicídio…

Tudo temas que tínhamos ideia que não eram coisas comuns em tão tenra idade.
Mas são. Estamos a dar nomes técnicos às coisas. Antigamente, não dávamos nomes técnicos, agora temos esses instrumentos e vamos dar nome às coisas. Quando começarmos a trabalhar a sério na prevenção e a ir bem mais fundo, vamos apanhar crianças que são espancadas, que são maltratadas, que vivem em sítios cheios de violência, que são negligenciadas, que são abusadas sexualmente, situações de incesto... A dimensão vai ser muito assustadora. Se calhar, é por isso que os próprias entidades públicas ainda não pegaram nisso de uma forma séria.

Isso é um fenómeno muito português ou é um fenómeno generalizado?
Nada do que acontece em Portugal é um fenómeno português.

Tem a ver com o nosso atraso cultural, económico?
Não. Existe este mito que os países nórdicos não têm tantos problemas como nós nestas áreas, mas não é verdade. É um pouco como a ideia que se tem de que isto é mais comum nas famílias mais pobres e acontece menos nas famílias com maior poder económico. Mas isso não é verdade, a violência não está ligada ao poder, nem está ligada às questões do dinheiro.

A violência perpetua-se de geração em geração e é por isso que não se tem conseguido conter, porque sendo precisamente um mecanismo aprendido, se não for trabalhado e se não for prevenido, vai perpetuar-se nas relações a seguir. Ou seja, de uma família para a outra geração a seguir.

Um dos grandes desafios que as Nações Unidas têm lançado é, precisamente, acabar com o ciclo da violência de geração para geração.

Se isto tivesse a ver com conhecimento, o poder económico, o acesso à informação não veríamos, como vemos actualmente aquele senhor do FMI [Dominique Strauss-Kahn] com problemas de violência sexual ou…

Ou como outros casos de que vamos tendo conhecimento em Portugal. Mas tendemos a achar quando são esses casos que são casos excepcionais.
Mas não são. Por exemplo, também acompanhámos uma situação do corpo diplomático, que envolvia uma senhora que estava em Portugal há vários anos e que não tinha controlo do seu passaporte, não conseguia relacionar-se com o mundo porque não tinha dinheiro para se mexer e estava completamente isolada, sem ter tido oportunidade de aprender português. Estava sequestrada na própria casa. Isto para dar uma ideia dos mitos que temos.

Voltemos à questão da educação e de como é que isto se combate nas escolas. Diz que violência não nasce connosco, mas em criança acontece muito ter de explicar aos rapazes que não devem bater em meninas. Começa aí o combate e a mensagem que se deve transmitir?
A questão é que é preciso desmontar isso – que os rapazes não batem nas meninas – porque não podem bater nas meninas, nem nos outros rapazes. É uma questão de direitos humanos. O que temos de fazer para entrar nessas idades mais tenras não é a questão moral do bom e do mau que os pais fazem no seu dia-a-dia, na maneira como vêem os outros, mas um "pacote" que está desenhado internacionalmente ao nível das Nações Unidas sobre os direitos humanos.

O que temos de criar é uma cultura de direitos humanos e a cultura de direitos humanos vai desmontar esta questão das meninas e dos meninos. As meninas não podem ser maltratadas, é um facto, mas os meninos também não, os meninos têm de estar na escola, no bairro e nas famílias sentindo-se confortáveis.

É esta cultura de fundo que é preciso trabalhar: Os conflitos que as crianças têm não se resolvem pela força, nem pela vingança, têm de ser tratado pelo pensamento, pela capacidade de pensar como se sentiria se lhe fizessem a mesma coisa. É pelo trabalho do pensamento e da palavra que tem de ser criada uma nova cultura de estar na vida.

Portugal tem de adoptar um plano nacional na área dos directos humanos das crianças de forma a pôr isto a andar para algum lado.

Nesse aspecto, estamos atrasados em relação aos outros países da Europa?
Estamos. Esses programas já existem em muitos países. Nós apresentamos muitos projectos, mas que só envolvem aqueles meninos daquela turma e daquela sala. Devia haver um conteúdo mínimo que todos os professores têm de adoptar, não pode ser uma coisa opcional porque se for opcional cria uma desigualdade enorme entre as próprias crianças

E porque é que estamos atrasados?
As crianças nunca foram uma prioridade na agenda política em Portugal.

Mas a educação era uma prioridade, disse-se várias vezes, em vários governos.
É o ministério mais atrasado na área da prevenção da violência em Portugal. Ao nível da adolescência há já muita coisa que devia ter sido parada. Há abusos de crianças, jovens a abusar de crianças mais pequenas. Isto não é uma questão de bondade, é uma questão de direitos humanos de fundo. Estou há mais de 20 anos nesta área, já me reuni, mas também já desisti com vários ministros. As coisas não passam de determinados gabinetes.

Emperram na burocracia ou na economia?
Emperram na agenda política. Temos uma cultura judaico-cristã que se prende em muitas coisas como “se te derem uma bofetada dá a outra face”. Isto é absolutamente contra os direitos humanos. Os direitos humanos defendem que ninguém tem o direito de maltratar ninguém. Se há um conflito tem de se procurar quem nos possa ajudar a resolver o conflito. E as crianças têm de aprender isso, têm de procurar um adulto que possa ajudar a resolver, não podem passar à acção.  O mundo das crianças é talvez a maior urgência na agenda política que temos a nível nacional.

Este tipo de campanhas, como esta contra a violência no namoro, funcionam assim desgarradas?
Funcionam sempre. Todas as campanhas terão sempre essa missão de sensibilização e temos visto isso ao longo de mais de 20 anos. A sociedade que temos hoje tem menos tolerância face à violência do que que tinha há 20 anos. Há sempre impacto, não só nas pessoas envolvidas, mas em quem está à volta. Mas não chega.

Por outro lado, qual é a estrutura que temos a nível nacional para dar apoio? As escolas praticamente não têm recursos, todos os problemas que têm, tentam atirar para um psicólogo, que não tem mãos a medir para a quantidade de crianças que tem e que não pode fazer ali uma terapia.

Localmente tem de haver serviços especializados, não basta as comissões de protecção, porque actuam em crise. É preciso que a comunidade, face ao número de habitantes que tem, desenhe uma estratégia também de suporte. Faz isso em relação aos idosos, aos sem-abrigo, tem de fazer também para as crianças e para as vítimas de violência.